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    Esperança?

    Artigo

    1123 Jornal A Bigorna 31/12/2020 22:10:00

    Mário Quintana garantia que ela habitava o décimo segundo andar do ano. E que se trata de uma mulher completamente ensandecida. No fim, ao ouvir os gritos de Ano Novo, ela se atira daquela altura distante e cai... feliz. Nenhum dano. A esperança está incólume na calçada. Milagre! É uma menina de novo! O lindo poema encerra com a curiosidade despertada pelo fato ímpar: “E em torno dela indagará o povo: – Como é teu nome, meninazinha de olhos verdes? E ela lhes dirá (É preciso dizer-lhes tudo de novo!). Ela lhes dirá bem devagarinho, para que não esqueçam: – O meu nome é ES-PE-RAN-ÇA...” (Nova Antologia Poética, Globo, 1998. P. 118). O mesmo autor gaúcho garantia que sim, há problemas na vida. Há gente que atravanca o caminho. “Eles passarão. Eu passarinho”. É quase um haicai de esperança e de otimismo.

    Gonzaguinha tinha um texto musical que sempre convém cantar no fim do ano. “Eu sei que a vida devia ser bem melhor e será, mas isso não impede que eu repita: é bonita, é bonita e é bonita!” Impossível ler estes versos sem cantarolar mentalmente a mensagem. A vida é bonita, claro, com momentos oscilantes. Vale o conjunto da obra.

    Acusam as mensagens de esperança de serem analgésicos, opiáceos para a dor da vida. Viver é sofrer e nada teria sentido. As mensagens otimistas, como a de Quintana ou Gonzaguinha, seriam apenas medicamentos.

    Não duvido da presença universal da dor. Não importa o que eu faça; em alguma esquina, dorme o cão raivoso da doença, da crise e da morte. É um Cérbero de três cabeças que, sempre, inexoravelmente, conseguirá me pegar pelo calcanhar e machucar. Ele é sorrateiro. Eu sei disto. Já levei dentadas do bicho. Porém, um médico equilibrado sabe que o analgésico tem efeito, diminui a dor e permite seguir o tratamento. Se esperança pode ser aspirina leve ou morfina pesada, serve para enfrentar os cachorros hidrófobos dos becos sombrios. Seria estranho ler mensagens pessimistas diante do desafio de enfrentar o real, como se eu quisesse ficar batendo na carne que sangra para que ela possa, ainda mais, derramar meus fluidos.

    A vida encontra sentido nela mesma. Sorrir ou ler mensagens positivas nunca evitará que ocorram coisas difíceis. Porém, a esperança contida é sempre uma maneira de encarar com humor e leveza, dar perspectiva, ver com menos peso. O pessimismo tem um defeito: reforça a dor. A esperança pode torná-la mais graciosa, mesmo que saibamos ser inevitável. Sempre aposto na aspirina, nunca no prego quente que ajude a perfurar ainda mais a parte atingida. Tem gente que acha que a dor é sinal de maturidade e que a alegria seria infantilidade. Eu diria que a fixação no sofrimento é algo estranho. Não precisamos abusar de analgésicos, apenas usar quando algo incomoda, para ter clareza e resolver o problema. Quando a dor nos domina, ficamos desnorteados. O analgésico diminui a dor, não resolve a doença, entretanto cria um caminho seguro para eu buscar a cura. A dor alucina; a esperança acalma.

    Existe algo ruim em fingir felicidade que se espalhou nas redes sociais nos últimos anos. Existe um sentimento mais antigo, com raízes religiosas e filosóficas, de centralizar o sentido na dor e na tragédia. As duas posturas parecem ver um polo de alegria ou de dor como o caminho válido. São falsas, ambas. O sentido da nossa biografia não é gargalhar ou chorar o tempo todo. A existência não nasce dos dentes expostos ou do desespero. A vida vale por ela mesma.

    Tarcísio Padilha escreveu que “o pessimismo cessa tão logo começamos a agir, a pensar, a amar e a esperar”. Existe, claro, uma exceção a tudo que eu já disse e direi: a depressão é uma doença e assim deve ser encarada e tratada. O pessimismo crônico, se não for fruto da depressão, é um disfarce engenhoso para a não ação. Explico-me. Se nada pode ser feito, se tudo dará com os burros n’água, não preciso agir. Assim, no rastro da ideia de Padilha, a ação estabelece uma reação ao pessimismo e tende a desfigurá-lo. Esperançar, esperar com ação e determinação, é decorrência disso. Meu amigo Cortella enfatiza a bela ideia de esperançar. Esperança não reside na espera apenas, inerte, porém na ação efetiva. O grande londrinense vai além: é preciso transbordar esperança, ir além da borda, ampliar o mundo. Dando voz direta a Cortella de novo: “Esperançar é se levantar, esperançar é ir atrás, esperançar é construir, esperançar é não desistir! Esperançar é levar adiante, esperançar é juntar-se com outros para fazer de outro modo.”

    Acredito no otimismo solar de Mario Sergio Cortella e nas boas indicações de poetas e filósofos. Acredito que, se a dor é inevitável, o sofrimento pode ser diminuído pela esperança. Vamos esperançar muito em 2021. Repare: ela está lá no alto, do décimo segundo andar com cara de dezembro. Falta pouco para o salto maravilhoso e a metamorfose em nova criança, sempre verde, fértil e vicejante. Um ano novo muito esperançado com ações e otimismo. Voltando a Gonzaguinha, esta é a beleza “de ser um eterno aprendiz”. E renascer sempre, como a esperança que vai saltar a qualquer momento para ficar junto aos que passam pelo burburinho abaixo. Feliz Ano novo, repleto de esperança. Esperançar é um lindo hábito brasileiro.

    Por Leandro Karnal, O Estado de S.Paulo

     

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