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    Tango na suspentena

    Conto

    7449 Jornal A Bigorna 30/03/2020 12:00:00

    Faz três semanas que não saio do escritório. Sem banho, apenas  à base de café e pão que o Português da Padaria me entrega debaixo da porta, a vida só não perdeu o sentido porque estou gripado e não sinto cheiro. A bendita suspentena se tornou uma eternidade, ainda mais para mim que sou um detetive que se dedica ao trabalho 24 horas por dia.

    Sim, sou foda. Trabalho mesmo. Sou até altruísta!

    O Bernardinho está sobrevivendo também. Ele é meu novo hamster. Eu amo hamsters. Mas sempre que falta comida eles me abandonam. Estou pensando em adotar um gato.

    Mamãe está na Europa, em viagem internacional. Ela não para. Mamãe é especial. Mandou o cheque do mês pra eu pagar o boteco. Mamãe nunca falha.

    À noite, claro, pego um Uber e saio no devaneio da vida. A Gertrudes, fechou o bar, mas tem uma portinha do lado que só entram os clientes especiais. Ela vende fiado.

    Com a tal suspentena bebemos até clarear o dia. Depois volto pro escritório e durmo no sofá. O duro é ficar sem banho, mas como sou chique, tenho perfume francês que ganhei de mamãe quando ela esteve na cidade das luzes.

    Sou cheiroso.

    Os dias passam rápido, pois quando acordo da ressaca já são quase sete da noite e quase hora de voltar pra Gertrudes. A Gê é gente fina. Lá não entra quem não apresenta atestado médico que está imune do tal vírus que tá virando tudo.

    Desgraçado.

    Estou sem clientes. Nem as viúvas ou as mulheres traídas têm saído para contratarem um detetive. Estão aguentando o ‘cifre de cabeça erguida’. Eu as admiro. Só sei que quando tudo isso acabar vai ser um festival de divórcios.

    Já passava das oito da noite quando bateram em minha porta. Levei um susto e derrubei o frasco de perfume que se espalhou pelo chão. Maldito. Quem se atreve a quebrar minha suspentena.

    Abri a porta de leve.

    Era uma morena. Estava chorando.

    Sou sentimental e sabia se deixasse ela entrar, eu choraria também. Mas tenho o coração puro, e abri a porta.

    Ela entrou sem pestanejar e logo se sentou no sofá e não parava de chorar.

    Odeio quando mulheres choram. Não tinha nem um copo com açúcar pra dar para a pobre embevecida.

    Sentei-me em minha linda e suntuosa poltrona de couro que comprei do Leandrão. Ele é um cara bom, mas infelizmente rouba. Gosto dele e então o ajudo e compro algumas coisas que ele rouba. Eu não sou ladrão, ele sim. Coisas da vida.

    Mas voltemos a morena.

    Ela me contou uma estória longa e pausada por horas a fio.

    Terrível a estória.

    Fiquei abalado.

    Quando me dei conta já passavam das três da madrugada e eu não tinha me embebedado.

    Ela chorou, chorei, choremos nós...

    Por fim, quase às cinco da manhã ela foi embora. Deixou a grana e me pediu sigilo.

    Sou impoluto, e não poderei contar pra vocês o que ela me disse. Apenas prometi que resolveria o caso.

    Sai e fui na Gê. Ela estava deitada já, mas me deixou tomar uma birita. Por fim, meu melhor amigo Hercculano apareceu também. A suspentena tinha nos separado. Ele me abraçou, apesar de eu dizer que não podia, que tinha que ter álcool em gel, e ele me falou que eu era um ser com álcool ambulante pelo corpo. Tudo bem. Relevei. Contei o caso da morena pra ele. Dei-lhe uns trocados e mandei-o resolver o caso.

    Ele saiu, e depois de umas duas horas voltou todo ensanguentado, mas feliz. Herculano tem uns dois metros de altura, forte como um toro, é gay, e é meu amigo.

    Sentou-se. Tomou um drink. Nóis é chique, sim, drink. Ergueu a taça e gritou, tá feito.

    Sorri.

    Amo o Herculano.

    Duas semanas depois, quando acabou a suspentena fui visitá-lo. Ele estava internado com o tal do vírus, mas os médicos falaram que em poucos dias ele sairia são e salvo.

    Herculano é forte.

    Agora como acabou a suspentena os botecos reabriram e fui tomar um café no Português. Ele me serviu cordialmente como sempre, mas olhou feio e cobrou os três meses de conta atrasada.

    Faz parte, eu disse, pois nem minha energia elétrica cortaram, disse a ele. Foi a suspentena que causou esse festival de calotes.

    Depois do café reabri a agência Tango de Investigações Gerais.

    Era o recomeço.

    Olhei as horas, sentei-me e cochilei ali mesmo por algum tempo.

    De repente a porta abriu com um supetão.

    Era a morena!

    Ela gritava como uma histérica. Estava louca e descontrolada. Fechei rapidamente a porta e fiz ela se acalmar depois que dei uns tabefes nela.

    Por fim e mais calma pedi que ela me falasse tudo.

    Ela chorou um pouco. Olhou para mim e disse:

    “Seu burro. Era pra matar meu marido, não meu pai.”

    Confesso que fiquei arrasado. Dei a ela o número do Procon, caso quisesse me processar.

    É um direito do consumidor.

    Antes de sair ela me deu uma bofetada e cuspiu na minha cara.

    Doeu.

    Como o dia estava lindo fui tomar um belo banho, porque à noite seria esplendida. Antes passei na floricultura e comprei rosas. Pedi ao dono que enviasse ao velório onde estava acontecendo o sepultamento do falecido, morto por engano. Pobre homem. No lugar, na hora errada.

    No caminho passei defronte ao Procon. A morena não estava lá.

    Ufa.

    Vamos pra Gestrudes.

    Tango, Afrânio Tango, detetive particular.

     

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