• Palanque do Zé #358 - Fahrenheit 451, a distopia virou realidade

    120 Jornal A Bigorna 22/06/2025 18:20:00

    Não raras vezes, os grandes clássicos distópicos da literatura deixam de ser apenas ficção futurista, para se tornarem verdadeiras advertências inquietantemente próximas da nossa realidade.

    Obras como “Admirável Mundo Novo”, “1984” e “A Revolução dos Bichos” foram escritas como sátiras, exageros intencionais de contextos políticos e sociais de sua época.

    Certamente não é esse o caso de “Fahrenheit 451”, de Ray Bradbury, eis que a obra ultrapassou essa fronteira com impressionante precisão. Publicado em 1953, o romance quase documenta os nossos dias.

    Na narrativa de Bradbury, os livros são tratados como objetos subversivos. Não são apenas censurados, mas ativamente destruídos. Os bombeiros – símbolo de proteção no mundo real – tornam-se agentes do apagamento cultural, encarregados de incinerar qualquer vestígio de pensamento crítico registrado em papel. Em vez de conter incêndios, eles os iniciam.

    Inclusive, o número 451 faz referência à temperatura (em graus Fahrenheit) da queima do papel, equivalente a 233 graus Celsius. Por isso, vemos esses números tanto no título da obra, quanto nas vestimentas dos bombeiros do livro.

    A inversão de valores é chocante, mas não inédita na História. A realidade já demonstrou seu desconforto com o poder da palavra escrita em eventos como a destruição da Biblioteca de Alexandria ou a queima de livros promovida pelo regime nazista em 1933.

    O alerta de Bradbury, no entanto, vai além da censura. “Fahrenheit 451” denuncia a alienação cultural promovida pelo entretenimento vazio.

    Em um mundo onde os livros são proibidos, as pessoas passam seus dias mergulhados em telas, distraídos por programas banais que anestesiam o senso crítico e reforçam uma falsa sensação de conforto.

    Mildred, esposa do protagonista Guy Montag, é o retrato dessa alienação: Vive imersa em telenovelas interativas, incapaz de qualquer pensamento autônomo ou reflexão existencial.

    A indiferença de Mildred é, em si, uma tragédia silenciosa. E qualquer semelhança com os nossos dias não é mera coincidência.

    Montag, bombeiro exemplar, só começa a romper com essa realidade entorpecida após conhecer Clarisse, uma jovem que ousa fazer perguntas. A partir daí, sua jornada de autodescoberta o leva a questionar o sistema, o papel da literatura, e finalmente, sua própria humanidade.

    O que para muitos é apenas um enredo dramático, pode ser lido como uma poderosa metáfora: Em tempos de desinformação e manipulação midiática, pensar é um ato revolucionário. Principalmente em certos países latino-americanos onde pessoas são presas somente por serem quem são, e não pelo que fizeram.

    Bradbury, ao retratar um Governo que teme o conteúdo dos livros, expõe uma verdade incômoda: Regimes autoritários sempre temeram o pensamento livre. E não sem motivo. A leitura é uma ameaça ao status quo porque desperta dúvidas, promove o debate, ilumina contradições. Não à toa, ao longo da história, ditaduras priorizaram a destruição ou o controle da produção literária.

    A literatura, como nos lembra o professor Faber no romance, serve a três propósitos essenciais: oferecer informações de qualidade, conceder tempo para reflexão e permitir que ações sejam tomadas com base nesse aprendizado. É justamente esse ciclo que se pretende interromper quando se censura, distorce ou banaliza o conteúdo cultural.

    No entanto, Fahrenheit 451 não termina em um contexto de desesperança, pois um grupo de dissidentes, cada um responsável por memorizar um livro inteiro, com o objetivo de preservar o saber humano, prepara-se para o dia em que possam reerguer a cultura das cinzas, republicando as obras antigas.

    Ler Bradbury, hoje, não é apenas uma experiência literária. É um ato político. Em tempos de ataques à liberdade de expressão, sua obra ganha urgência. Vamos nos tornar alienados e reféns do Regime, ou vamos memorizar livros e exercitar o pensamento crítico?

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