
Um grupo diferente se postou para assistir a uma palestra no Auditório Safra, da Faculdade de Economia e Administração (FEA), da Universidade de São Paulo (USP). Eram policiais militares sem suas fardas. Não traziam nenhuma arma ostensivamente, mas estavam ali em razão de um homem jurado de morte: o promotor de Justiça Lincoln Gakiya, do Grupo de Atuação Especial e Combate ao Crime Organizado (Gaeco).
Mais de uma centena de pessoas aguardavam ali o começo da apresentação de Gakiya – e difícil encontrar uma associação empresarial, embaixada estrangeira, ou administração pública que não tenha ouvido nos últimos anos o que o promotor tem a dizer sobre a atuação do crime organizado no País, particularmente, do maior de todos os grupos, o único já considerado um cartel da droga, o Primeiro Comando da Capital, o PCC.
Ali estavam especialistas americanos, italianos e brasileiros para ouvir o promotor no seminário Crime Organizado e Mercados Ilícitos no Brasil e na América Latina, promovido pela Cátedra Oswaldo Aranha, do Instituto da Escola de Segurança Multidimensional (ESEM), da USP. “Não há nenhuma dúvida de que o PCC pratica atos de natureza terrorista. O PCC se tornou hegemônico no Estado de São Paulo, não há nenhuma outra facção que faça frente ao PCC hoje no Estado”, disse o promotor ao descrever a facção.
Lincoln fez um histórico da organização. Tratou dos ataques às forças policiais, do massacre promovido pelo PCC em maio de 2006 e da pax mafiosa que ele criou nas comunidades pobres do Estado. “Quando você se torna hegemônico no tráfico de drogas dentro do Estado, você faz com que a a taxa de homicídio diminua, porque, é evidente, a maioria dos homicídios é ligada à disputa de tráfico de drogas, no Brasil todo.”
Se nos anos 200O a redução dos homicídios esteve ligado à redução de circulação de armas ilegais no Estado, nos anos seguintes, a queda dos homicídios ocorreu não em razão de um maior controle de armamentos – na verdade, houve o contrário, o afrouxamento dos controles de armas no Brasil –, mas as mortes violentas caíram não só em São Paulo, mas no País em razão da pax mafiosa. “Nem sempre a diminuição da taxa de homicídio pode ser o sinalizador de que nós estamos evoluindo no combate às organizações criminosas e que a segurança vai bem. A segurança no Brasil todo vai mal.”
Segundo Gakiya, após deixar os presídios e se expandir para as ruas, o PCC mudou a realidade criminal no Estado. “No decorrer desses 20 anos, nós não temos hoje nenhum ponto de venda de droga neste Estado, que não seja do PCC, que não seja de algum integrante do PCC ou que não seja de um permissionário do PCC. O ponto é esse.” Foi essa segurança que levou a facção à sua terceira fase: a da internacionalização, que começou em 2008, quando o grupo passou a comprar drogas na Bolívia e no Paraguai.
Foi quando passou a manter relações com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) e com o Ejército del Pueblo Paraguayo (EPP), dois grupos insurgentes de extrema-esquerda, que usavam o tráfico de drogas para se financiarem. Os grupos vendiam drogas e davam treinamento paramilitar aos integrantes do PCC. “Hoje, nós não temos nenhum integrante que não saiba usar um fuzil, explosivo etc. E veja, o PCC também cresceu no Paraguai. Em 2008, ninguém diria que o PCC ia dominar o Paraguai.”
De acordo com o promotor, não há no país vizinho atualmente nenhuma organização que “faça frente ao PCC”. “E começou por onde? Dentro do sistema prisional. É lá que eles são mestres, é lá que eles são bons no que eles fazem. Nenhuma organização criminosa que eu conheço, que eu tenho estudado no mundo, tem maior atuação e melhor atuação dentro do sistema prisional do que o PCC”, afirmou o promotor.
Do tráfico local, o PCC passou ao internacional. E agora investe na Ásia, chegando a ter integrantes na Turquia, no Líbano e no Japão. “Porque o quilo de cocaína na Ásia chega a US$ 150 mil. Estão comprando a produção (na Bolívia) a US$ 1 mil o quilo – às vezes, US$ 800 o quilo – e essa cocaína chega em Hong Kong, na Ásia, a US$ 150 mil o quilo. Não há nenhum negócio que dê mais dinheiro do que a cocaína hoje", afirmou.
Foi em razão do lucro astronômico do mercado da droga que o PCC passou, há dez anos, a começar a lavar o dinheiro. E hoje está presente em 13 setores da economia, conforme o promotor mostrou. Tudo começou com a compra de postos de gasolina, de agências de automóveis e de imóveis. Passaram em seguida a investir em empresas de construção e em casas de câmbio no Paraguai. Após a pandemia de covid-19 e com a desregulamentação bancária no País, a facção também começou a atuar em bancos digitais, fintechs e Fundos de Investimentos em Participações, além de criptomoedas.
A facção também se infiltrou em empresas de ônibus do setor de transporte público, igrejas, organizações sociais da saúde pública, na coleta de lixo e limpeza urbana, além da mineração e nas empresas de apostas e de jogos de azar, bem como em empresas ligadas ao futebol. Há aqui uma diferença do que acontecia no passado, quando o PCC explorava mercados ilícitos, como os garimpos ilegais e os contrabando de cigarros, cigarros eletrônicos, armas e agrotóxicos, além de executar grandes roubos a bancos.
“O que eu diria para vocês é que sim, o PCC hoje está na economia formal. As empresas que eles estão administrando não são mais empresas de fachada como há alguma década atrás. São empresas que existem, que estão prestando serviço, às vezes até prestando um bom serviço. Mescla-se nelas o dinheiro do tráfico de entorpecentes, do tráfico internacional, com o efetivo lucro que as empresas dão por ano”, disse.
É nesse contexto que Gakiya procura convencer o governo e o Congresso a adotar um projeto da lei antimáfia que crie uma agência federal de combate ao crime organizado, que centralize o combate à lavagem de dinheiro. Além disso, uma lei antimáfia deve criar a figura da organização criminosa de tipo mafioso. E permitir que os bancos sejam obrigados a bloquear preventivamente os recursos suspeitos de origem mafiosa, como acontece nos casos de suspeita de terrorismo.
Por fim, a lei antimáfia devia punir o domínio territorial exercido pelas facção como um novo delito, bem como obrigar o cumprimento da pena de faccionados em um modelo de cárcere duro que prescinda da renovação anual atualmente obrigatória para a internação de presos no Regime Disciplinar Diferenciado (RDD).
Desde o fim de 2024 o governo prepara o projeto, que acabou atropelado pela PEC da Segurança, que tratou apenas em parte do problema, deixando as demais alterações infraconstitucionais para o futuro projeto de lei. O problema é que a PEC foi entregue ao Congresso em abril e mais de dois meses depois, o projeto antimáfia, que devia ficar pronto em maio e, depois, em junho, ainda não saiu dos escaninhos do Ministério da Justiça. Disputas corporativistas entre as polícias estariam por trás da paralisia.
Enquanto o País insiste em combater o crime organizado apenas no nível local, despachando policiais vestidos de rambo para abater bandidos pés-de-chinelo em comunidades pobres, o crime organizado se internacionaliza e opera em um número cada vez maior de mercados ilícitos, estabelecendo muitas vezes convivência e convergências com organizações terroristas, como o grupo xiita libanês Hezbollah.
Em alta
Há ainda a ligação entre as diversas máfias, como a aliança que uniu o PCC à ‘Ndrangheta, a máfia da Calábria, no sul da Itália. Foi a necessidade de encontrar parceiros idôneos para o combate ao crime organizado transnacional que trouxe ao Brasil o procurador nacional antimáfia e antiterrorismo da Itália, Giovanni Melillo. Ele estava no seminário com Fábio Bechara, promotor do Gaeco e colega de Gakiya.
“A coisa mais desafiadora para mim é a dimensão global das grandes organizações, não somente nos mercados tipicamente ilegais, como as drogas e lavagem de dinheiro sujo, mas também nos mercados legais, porque o investimento especulativo dos lucros do tráfico ilegal não faz outra coisa além de expandir e potencializar a influência das grande organizações criminosas”, afirmou Melillo.
Segundo ele, a Itália tem uma longa e profunda tradição de eficácia no combate às organizações mafiosas – parte das propostas da lei antimáfia propostas por Gakiya tem origem em medidas italianas. “As organizações criminais têm raízes mais profundas do que o terrorismo; elas têm raízes no sistema econômico, na sociedade e, desse ponto de vista, combatê-las é algo muito mais complexo do que enfrentar o terrorismo”.
Para o procurador italiano, o traço comum mais importante entre terrorismo e criminalidade organizada é a capacidade de desestabilização política, social e institucional dos países. “Essa é a dimensão mais perigosa ligada à dimensão organizada das atividades criminosas: a capacidade delas de impactar a sociedade. Por isso, o combate ao terrorismo e à criminalidade organizada exige o uso das mesmas técnicas de investigação”, defendeu Melillo.
O procurador afirmou que o PCC é uma ameaça não só para o Brasil. “Ele é um componente importante da ameaça criminal dentro da dimensão transnacional da criminalidade organizada. Isso impõe às instituições que têm a responsabilidade de combater a criminalidade organizada a união de seus esforços. É por isso que vim ao Brasil, para construir novos instrumentos para buscar esse empenho em comum,”
Esse seria o caso da colaboração premiada do mafioso Vincenzo Pasquino, firmada após a prisão do criminoso no Brasil, em 2021, e, depois, extraditado para a Itália. “Pasquino é um bom exemplo de colaboração porque ela não teria sido possível sem a assistência judiciária que o Brasil deu, permitindo os primeiros interrogatórios da nossa parte e, depois, a extradição. E a colaboração de Pasquino se tornou importante também para as autoridades brasileiras.” Por meio dela, a PF deflagrou no Brasil a Operação Mafiusi e a procuradoria italiana, a Operação Samba, ambas em dezembro de de 2024.
Melillo, Gakiya, Bechara e outros mostram o caminho. Falta aos governos federal e estaduais, e aos parlamentares de todos os partidos, deixarem de lado as medidas ineficazes, que só aumentam o tamanho das penas sem melhorar a eficiência da polícia para diminuir a impunidade do crime. Uma pena maior não terá efeito prático se não for possível esclarecer crimes e acabar com a impunidade dos criminosos.
Análise por Marcelo Godoy
Repórter especial do Estadão e escritor. É autor do livro A Casa da Vovó, prêmios Jabuti (2015) e Sérgio Buarque de Holanda, da Biblioteca Nacional (2015). É jornalista formado pela Casper Líbero.