
O inaudito ataque de Donald Trump ao Brasil, após meses ignorando solenemente a relação com o país, transformou o presidente americano em ator central da corrida eleitoral do ano que vem.
Não há precedente histórico para o ocorrido, embora seja importante lembrar que o americano costuma reverter suas decisões mais drásticas em pouco tempo, como parte de sua propalada técnica de negociação passivo-agressiva —que até aqui só logrou trazer balbúrdia ao cenário global.
Na eleição de 2022, bolsonaristas se queixaram da nota da embaixada americana defendendo o sistema eleitoral contestado pelo então presidente, mas perto da carta de Trump aquilo foi um sussurro.
Perde de imediato Jair Bolsonaro (PL), que já declarou ter em Trump seu ídolo político. A coincidência de arco narrativo dos dois populistas sempre foi notável, na ascensão, na queda, na contestação institucional com toques golpistas.
O próprio republicano reconheceu isso ao dizer, nas postagens anteriores à carta tarifária, que Bolsonaro sofria a mesma caça às bruxas a que ele teria sido exposto. Aqui a dupla hélice, com um "delay" de dois anos usual entre os acontecimentos, se separou: a lei no Brasil é mais dura, e nenhum condenado pode ser presidente, como é o caso nos EUA.
Seja como for, agora Bolsonaro vê o custo de sua simbiose ideológica com Trump ser exposto. O apoio aberto do americano pode até lhe render o exílio, mas não mudará a disposição de seus julgadores —não deveria aguçar nenhum punitivismo também, mas aí talvez seja otimismo institucional em demasia.
Por mais malabarismo verbal que faça, o núcleo duro bolsonarista não tem como blindar o ex-presidente se o Brasil for de fato afetado pelo tarifaço, a começar pelo azedume de seus aliados no agronegócio.
É previsível, claro, um acirramento da polarização. Quem for bolsonarista raiz irá culpar o presidente Lula (PT), o ministro Alexandre de Moraes e os demais Torquemadas da fantasia desse grupo pela crise, ainda que seja preciso muita criatividade para justificar a ação de Trump no fim do dia.
Perde ainda mais a direita e centro-direita que orbitam Bolsonaro devido a seu cacife eleitoral. As manifestações sobre o episódio dos governadores desse grupo, Tarcísio de Freitas (Republicanos-SP) à frente, demonstra a dificuldade colocada.
Em diferentes gradações, culparam Lula por adular ditaduras e esposar o antiamericanismo tradicional do PT. São fatos, mas que nada têm a ver com a ligação umbilical de Trump e Bolsonaro, simbolizada nesse entorno pela imagem de Tarcísio como boné do MAGA.
Em outras circunstâncias, seria a desculpa ideal para essa direita romper de vez com o bolsonarismo, mas o temor do julgamento das redes do grupo e o peso eleitoral do ex-presidente ainda falam mais alto. Não será surpresa, contudo, se integrantes da segunda geração bolsonarista comecem a se distanciar em busca de voo próprio.
Com tudo isso, ganha um ativo eleitoral inesperado Lula, bastando ler de forma inversa os parágrafos anteriores. É facílimo colar qualquer crise, se é que ela haverá mesmo, na relação entre Bolsonaro e Trump. De quebra, o republicano é majoritariamente malvisto no Brasil, como apontam pesquisas.
Mas uma coisa é o ambiente da luta política, do vale-tudo das redes. O risco para Lula é exatamente ir ao ataque ostensivo como ação de governo, pois aí um acirramento dos efeitos práticos do embate com a Casa Branca poderá ser debitado da eventual ideologização da resposta brasileira.
O histórico de Trump permite supor que haverá recuos nessa tensão antes de ela escalar de forma incontrolável, mas se isso ocorrer, nunca é demais lembrar quem tem mais recursos à mão para a briga.(Da Folha de SP)