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    A vontade de justiça

    526 Jornal A Bigorna 05/03/2023 08:10:00

    O mundo gosta da ideia de justiça. Criminosos devem pagar pelo que fizeram. O erro deve ser punido. Toda a ideia de sociedade se assenta nisso. Vou além: a grande arte da convicção religiosa está baseada em uma condenação ou recompensa além do plano físico, o que serve como consolo a um planeta tão marcado pela impunidade.

    O primeiro problema está no fato verificável de que (sim!) existe uma certa justiça entre atos e consequências. Algumas pessoas são presas. Alguns são punidos. Há processos. Todo mundo sabe que muita coisa escapa à balança da lei.

    Aprofundemos. O fato de ser bom e honesto (ou imaginar que seja) não protege contra o câncer, acidente, roubo ou traição. Esta é a pergunta do livro de Jó: “Por que sofrem os bons?” Existe a resposta dada por Deus ao Seu servo, que reflete: “Os planos divinos são insondáveis, e nós, que não colocamos o anzol no Leviatã monstruoso, nada podemos saber”. Segundo a narrativa, Deus revela a quem aceita com paciência resignada a recompensa com novos filhos e mais bens, com saúde e prosperidade... Tudo aquilo que compensará o perdido.

    Sem muito discurso sobre a vida após a morte, o Judaísmo destacou a proteção divina neste mundo. Com maior aspiração metafísica, o Cristianismo demorou mais na descrição, em verso e arte, do Inferno e do Paraíso. Igual caminho segue o Islamismo ao prever delícias ou castigos como consequência dos atos em vida. Sendo agora ou depois da morte, as religiões monoteístas proclamam a vitória final da justiça.

    Abraham Lincoln disse que não podemos enganar todos por todo o tempo: “You can fool some of the people all of the time, and all of the people some of the time, but you can not fool all of the people all of the time”.

    Ele jamais veio ao Brasil, claro. Porém, mesmo onde o braço da lei seja débil ou seletivo, acreditamos em um triunfo eterno do certo e do errado, ao menos dado pelo Ser Supremo.

    Platão imaginou um anel, o de Giges, que nos tornaria invisíveis e, como tais, imunes à punição dos semelhantes. Quero discutir o conceito de moral e da base do comportamento humano: “E... se não temêssemos danos à reputação ou quaisquer punições, seríamos boas pessoas?” A internet proporcionou um poder do anel de Giges a muitos que, sob perfis anônimos, conseguem caluniar, insultar, divulgar fake news e outros quejandos. Seria ela a resposta contemporânea ao desafio proposto na República platônica?

    Gostamos da ideia da punição. Talvez porque sejamos justos, mas consideremos a hipótese de que, psicanaliticamente, o infrator punido atende à nossa própria contenção moral: “Nunca roubei e, assim, quando o ladrão é preso, minha repressão moral encontra justificativa”. Como pensava Sartre, ao falar de um “marginal” como Jean Genet – a sociedade precisa de gente fora do esquadro moral para continuar existindo.

    No plano cotidiano e pequeno-burguês: “Eu sorrio ao perceber que, quilômetros adiante, um motorista que passou pelo acostamento foi parado por um policial. Eu, que nunca uso a via ilegal, sinto então que o mundo volta ao eixo, a lei atende ao ditame jurídico e, acima de tudo, à minha ânsia impotente de vendetta”.

    O que houve? “O mundo voltou ao seu estado natural; fui consagrado como homem de bem, posto que deve me custar algo interno a ponto de eu me alegrar com a multa alheia. Freud sorriria diante do meu sorriso. Sartre daria uma baforada no cigarro. Eu, menos inteligente, postaria a multa no TikTok com o nome ‘carma instantâneo’.” Carma, aqui, é o desejo reprimido de transgredir.

    Num dia, em uma palestra, eu falei que somos ambíguos moralmente, porque apontamos nos outros faltas públicas que fazemos em privado, perdoamos deslizes nossos que imputamos com dureza aos outros, em especial ao Estado.

    Eu completava a ideia que incomodou tantos: governos corruptos costumam ser mais frequentes nas sociedades que convivem melhor com a corrupção no cotidiano. Como a ideia traz a responsabilidade onde seria mais confortável ver a alheia tão-somente, houve reações. Um comentarista das redes usou o recurso de redução ao absurdo (reductio ad absurdum), muito empregado na lógica do Instagram: “Então, se eu arranquei cabeças das bonecas da minha irmã na infância, eu não posso criticar as decapitações de prisioneiros levadas adiante pelo Estado Islâmico?”

    Na época, as cenas chocantes de execuções públicas estavam na consciência de todos. Respondi que eram coisas incomparáveis em si, e o argumento constituía um erro lógico. Porém... a indiferença demonstrada na infância diante da dor da irmã (alguém próximo e afetivo do seu universo), continuada na vida adulta, pode chegar ao desprezo diante da morte cruel de prisioneiros.

    Sim, quem foi capaz de ignorar o choro de alguém ao seu lado tem algum potencial para ser frio com o estatuto humano de um desconhecido capturado. São coisas diferentes e, sobre elas, o mesmo humano justo e injusto, com seus anjos e demônios. A esperança? Talvez só na outra vida...

    *Por Leandro Karnal

     

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