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    Celular terapeuta? Cientistas testam tecnologia contra transtornos mentais

    907 Jornal A Bigorna 10/01/2022 20:30:00

    Para saber mais sobre um amigo, cliente ou até o próximo alvo de uma paquera, explorar as redes sociais é um caminho comum. Se curtidas, selfies e comentários dão tantas pistas sobre nós, quanto a tecnologia pode dizer sobre nossa saúde mental? É isso o que investiga uma nova corrente da ciência.

    Análise de mensagens no Facebook, cor de fotos no Instagram e até avaliar o tempo entre cliques estão no radar. A hipótese é de que dados coletados por smartphones podem ser usados para identificar padrões de comportamento e interações sociais. Sem substituir psicólogos e psiquiatras, mas para auxiliar consultas presenciais. O modelo cresce, assim como o debate ético.

    Terapeuta no celular

    Em uma pesquisa desse tipo, um grupo de adolescentes responde a questionários pelo celular sobre como se sentem. Podem ser áudios e até emojis para narrar emoções. No dia a dia, um aplicativo em seus celulares capta fragmentos de sons do ambiente e mede o movimento dos aparelhos. Tudo é analisado para saber o risco de depressão – resultados iniciais saem este ano.

    “O grande desafio não é capturar e processar dados. A questão é como dar sentido a eles”, diz Christian Kieling, professor de Psiquiatria da Infância e da Adolescência da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), à frente do projeto, que monitora 150 adolescentes pelos smartphones. Entre os voluntários, há jovens já com diagnóstico de depressão, com alto risco de ter o transtorno e com baixo risco, conforme escala validada cientificamente.

    Nos áudios, avaliam o conteúdo e a forma. Já o app capta, de 15 em 15 segundos, amostras de som do ambiente. E há o pacto de confidencialidade: os cientistas não escutam a conversa, mas sabem o número de vozes, para medir a interação social. O app coleta dados de geolocalização e padrões de atividade e repouso – é permitido desligar a qualquer hora. Terapias contra a depressão estimulam conexões e atividade física. Informações sobre interações e movimentação espacial podem facilitar intervenções personalizadas. O grupo deve ter ainda consultas com psiquiatras, exames de sangue e ressonância.

    Outro estudo, ligado à Federal de São Carlos (UFSCar), prevê a tecnologia para ajudar na identificação precoce de possíveis perfis depressivos. O trabalho foi iniciado em 2021, após o suicídio de um aluno. Um modelo computacional vai analisar textos dos estudantes no Facebook. A ferramenta, criada na UFSCar em parceria com a Federal do Triângulo Mineiro (UFTM) e a Universidade George Mason (EUA), tenta “ler” palavras e expressões indicadoras de possível perfil depressivo. O robô é esperto, mas, ao decifrar a escrita, escapam-lhe entonação e ironia, por exemplo. “Não é porque tem poder de processamento que a inteligência artificial é melhor do que a gente”, diz Helena Caseli, professora de Computação da UFSCar.

    Para ter análise mais robusta, serão coletados sinais fisiológicos (batimentos cardíacos e padrões de sono) por meio de relógios inteligentes. Os resultados podem servir para um “mapa epidemiológico” – e estratégias institucionais de bem-estar dos alunos –, além de análises individualizadas. Um dos trunfos é comparar dados de um paciente hoje com informações anteriores dele e ver eventuais mudanças.

    Para Felipe Giuntini, pesquisador do Sidia, centro de inovação em soluções digitais, é possível ver, no processamento de dados das redes, um padrão de emoções. Em seu doutorado na Universidade de São Paulo (USP), ele coletou publicações no Reddit, rede social popular nos Estados Unidos, por dez anos. Foram selecionadas postagens – incluindo emojis – de um grupo de apoio a pessoas com depressão. A análise mapeou palavras como “tristeza”, “vergonha” e “entusiasmado” para ver padrões e aprender com a própria rede. Para Giuntini, o algoritmo ajuda a entender alterações de humor dos pacientes.

    Em outra frente, a ideia é levar ao consultório quem ainda está longe. “A pessoa vai ao cardiologista e descobre no check-up uma arritmia. Isso não acontece em saúde mental”, diz Alexandre Loch, do Instituto de Psiquiatria da USP. A demora média desde os primeiros sinais até o diagnóstico do Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC), por exemplo, é de 11 anos.

    Loch testa um software para avaliar imagens do rosto e a fala de voluntários, de 18 a 35 anos, em entrevistas presenciais. Análises computacionais rastreiam pausas no discurso, movimentos de olhos, gesticulação e falta de conexão na fala – aspectos que seriam notados pelo psiquiatra na consulta. Mas quem sai da fábrica entende de divã? Um estudo com inteligência artificial para detectar câncer de pele da Universidade de Stanford (EUA) mostra que o algoritmo discernia lesões como um dermatologista. Já na Psiquiatria cada um expõe raiva ou tristeza de um jeito. “Como é mais subjetivo e simbólico, é difícil a máquina aprender”, afirma Loch.

    Novo modelo envolve desafios éticos

    Pesquisas nessa área tiveram um empurrão do psiquiatra Thomas Insel, que ficou mais de dez anos à frente do Instituto Nacional de Saúde Mental dos Estados Unidos, principal agência de pesquisa sobre transtornos mentais do governo americano. Ele se dizia frustrado com as taxas crescentes de suicídio no país: alta de 33% nas duas últimas décadas.

    Nos últimos seis anos, Insel trabalhou no Google e fundou a Mindstrong, cujo app detecta até como o paciente digita no smartphone e promete ser um “alarme de incêndio” para crises emocionais. Para ele, a revolução tecnológica poderia ter mais impacto na saúde mental do que as descobertas na genômica e neurociência.

    Mas para robôs ganharem mais espaço é preciso vencer desconfianças sobre a qualidade das informações coletadas, segurança e privacidade de usuários. Se expostos, dados podem prejudicar pacientes, dizem cientistas de Stanford, em artigo de julho no Journal of Medical Internet Research sobre desafios éticos na área. Eles citam eventuais discriminações em vagas de emprego ou taxas mais caras de seguro por causa da investigação online.

    Outra preocupação é com a ansiedade ao receber esses alertas. “A resposta computacional aponta possibilidades, mas se não há serviço de atenção psicossocial que responda à demanda pode até causar mais frustração, de saber que necessita do cuidado e não encontrar”, diz Taís Bleicher, professora de Psicologia da UFSCar.

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