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    Computador é a nossa alma

    455 Jornal A Bigorna 18/01/2023 06:40:00

    Antigamente tínhamos corpo e alma. Hoje, ao lado da supremacia do corpo que tolhe a alma antiga dos catecismos e do senso comum, há — note bem — uma máquina imperativa e inevitável com que fazemos muito e que guarda implacavelmente, e em paralelo, os registros e eventos de nossas vidas. É o computador.

    A alma antiga se confessava e, livre momentaneamente de culpa, poderia ganhar o Purgatório ou o Paraíso. A nova, o computador, é comprada e tem muitos modelos e marcas. Separada de modo concreto de nosso corpo, ela, no entanto, fabrica uma subjetividade e compete com nossa memória e emoções. Não se confessa, exceto quando sofre de algum distúrbio e simplesmente quebra, promovendo pesadelos e surtos de ansiedade.

    Desde 1986 eu uso um Mac. Aliás, pensando bem, eu traí minha boa, velha e mecânica máquina de escrever — uma Hermes que me acompanhou nas minhas viagens de campo aos nativos apinajés — pelo Mac, que logo me mostrou ser um sujeito um tanto sobrenatural, em que eu escrevia de muitos modos, podendo escolher letras e apagar meus erros no silêncio profundo que anunciava minha pós-modernidade. Essa capacidade de continuar errando de modo cada vez mais perigoso para o mundo.

    Hoje, uso um modelo atualizado e repleto de novidades. Tantas que nem eu mesmo consigo usá-las completamente. Meu Mac é uma pessoa na forma de uma máquina que me ajuda a pensar, mas que também tem pensamentos e regras, de modo que sou submetido a ele de maneira bem diversa do que ocorria quando datilografava. Num certo sentido, meu Mac e eu nos datilografamos e inventamos dialeticamente, mas ele me oferece muito mais que uma mera escrita, pois posso gravar minha voz, consultar dicionários e jamais erro quando quero escrever Nietzsche. Por isso o Mac vira meu cúmplice no mascaramento de minha ignorância, ao mesmo tempo que me permite exibir uma precisão memorável de datas, nomes e fatos que, no passado, me levariam a uma biblioteca. Em outras palavras, na minha máquina de escrever eu estava no estágio básico do grafismo, pois éramos ideias, papel e um mediador — lápis, caneta ou pincel.

    Com o computador, posso mais e, é claro, posso menos. Tenho um número infinito de escolhas digitalizáveis pela máquina que me obedece, mas que igualmente me comanda e controla. É quando descubro que há na máquina um fantasma (como sugeriu Arthur Koestler) — ou uma alma. Um outro ego, com que me irmano, pois ele fabrica o que sou como escritor e, ao mesmo tempo, tem suas teimosias e regras, tal como um colega rebelde ou um inimigo mortal...

    Dentro de cada objeto há um sujeito; ou melhor: podemos passar muito facilmente de sujeito a objeto. A bomba atômica tem, é obvio, uma alma diabólica, que demoniza quem a manipula. Meu Mac tem sido meu criado fiel e, ao mesmo tempo, meu algoz. Dele sofri um golpe sem, felizmente, quebra-quebra bolsonarista. Foi o que ocorreu nesta semana que passou, quando meu fiel Mac simplesmente apagou meus arquivos, notas, projetos, estudos e crônicas, mudando sua configuração sem minha anuência.

    Foi quando percebi quanto existo para e com o que escrevo e, ao mesmo tempo, tive a perfeita experiência de que somos feitos em camadas. A memória traduz essas camadas que vão se superpondo à medida que eventos são “salvos” e postos numa certa ordem. Ora, quando a tela do meu Mac pifou e escondeu ou dissolveu meus arquivos digitais, me senti perdido. Uma fantasia de ter perdido tudo o que escrevi e publiquei e ainda quero publicar levou-me ao limbo. Ao espaço do ter feito, mas não poder retornar àquilo que é mais significativo na minha existência.

    O técnico diagnosticou: “Erro de sistema!”. Se fosse um político, diria que foi um golpe, mas, como sou trivial e comum, assumo com angústia o inesperado. O que me faz humano...

    *Por Roberto da Mata

     

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