• Depoimento de Bolsonaro extravasa versão da defesa, é evasivo sobre minutas e deixa lacunas

    514 Jornal A Bigorna 11/06/2025 21:00:00

    Em depoimento marcado por ambiguidades, o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) foi além do que até então sua defesa oficial tinha afirmado ao STF (Supremo Tribunal Federal).

    Apesar de ter repetido muitas das afirmações que já tinha dado em entrevistas e lives, Bolsonaro ainda não tinha admitido à corte formalmente que tivesse conversado sobre "possibilidades" com comandantes das Forças Armadas depois de ter sido derrotado nas eleições de 2022.

    O presidente, porém, evitou fazer afirmações mais diretas relacionadas aos documentos que ficaram conhecidos como "minutas de golpe". Assim como não respondeu qual seria o fundamento para alegar que havia fraude nas eleições e nas urnas eletrônicas.

    "Nós buscamos alguma alternativa na Constituição e achamos que não procedia e foi encerrado", afirmou Bolsonaro ao ministro relator, Alexandre de Moraes, nesta terça-feira (10).

    "Essas reuniões que ocorreram foram, em grande parte, em função da decisão do TSE [Tribunal Superior Eleitoral]", disse Bolsonaro, acrescentando que teria discutido alternativas depois de se ver tolhido de questionar o desfecho eleitoral diante da multa de R$ 23 milhões aplicada ao seu partido.

    Apesar de ter feito declarações admitindo conversas sobre "alternativas", inclusive citando estado de sítio, Bolsonaro buscou refutar que tenha debatido "golpe" em qualquer momento, assim como foi evasivo em perguntas que tratavam sobre o teor das minutas de decreto.

    "Da nossa parte eu sempre estive ao lado da Constituição, então eu refuto qualquer possibilidade de falar em minuta de golpe ou falar em minuta que não esteja enquadrada na Constituição", disse. "Não conversei sobre essa minuta não, fui bater um papo apenas."

    Ao ser questionado por Moraes se tinha sido apresentado a ele uma minuta, conforme relato do delator Mauro Cid, Bolsonaro afirmou que queria ter acesso a essa minuta.

    Depois de o ministro responder que ela estava nos autos, Bolsonaro afirmou que isso "foi colocado numa tela de televisão e mostrado de forma rápida ali".

    Ele negou ainda que tivesse "enxugado" uma minuta e, diante da pergunta se tinha apresentado algum documento em reunião no dia 7 de dezembro ao general Freire Gomes, então comandante do Exército, Bolsonaro também disse que foi mostrado de modo rápido em uma tela. "Foi passado na tela os considerandos de forma bastante rápida ali."

    As falas de Bolsonaro se afastam do tom de sua defesa formal apresentada até agora ao STF, que buscava colocar sob suspeita as declarações de Mauro Cid e debater tecnicamente o enquadramento criminal dos supostos atos imputados ao ex-presidente.

    Mais adiante, questionado se teria discutido nas reuniões sobre uma intervenção no TSE e a instauração de uma comissão eleitoral, Bolsonaro disse que "gostaria de ter acesso ao documento para discuti-lo" e falou que "as conversas eram bastante informais".

    Depois, ao responder pergunta de seu advogado sobre se "alterou, escreveu ou colocou no computador alguma minuta", Bolsonaro disse que não.

    Em peça protocolada no STF com sua defesa inicial, a defesa do ex-presidente não confirmava que ele tivesse estudado alternativas após a derrota ou que tivesse conversado a respeito com os então comandantes das Forças Armadas.

    No documento, que argumentava ainda não ser possível adentrar no mérito, os advogados já afirmavam que, mesmo que fosse possível confiar nas palavras do delator Mauro Cid, a "suposta minuta do decreto" estaria numa etapa que não é punível: a de atos preparatórios.

    "[A suposta minuta] não é ato capaz de ultrapassar o limite da preparação, jamais invadindo a esfera da execução dos chamados crimes contra as instituições democráticas", escreveram seus advogados.

    Bolsonaro, em seu depoimento, admite então elementos que antes só tinha afirmado em entrevistas. Outra diferença é que ele frisou por mais de uma vez, assim como já fez publicamente, que nunca convocou o Conselho da República (órgão que deve ser ouvido previamente à decretação de medidas como estádio de sítio).

    Já um ponto em comum entre a defesa formal e o depoimento de Bolsonaro é que ele enfatiza não ter assinado nenhum decreto.

    Bolsonaro também nega que tenha discutido um golpe e diz que sempre se guiou pelas "quatro linhas" da Constituição, levando sua acusação para o plano das narrativas. Isso porque, segundo a Constituição, alternativas de exceção como estado de sítio não servem ao propósito que movia o ex-presidente: o de insatisfação com o resultado das urnas, que deram a vitória a Lula (PT).

    Logo no início do interrogatório, Moraes questionou qual fundamento Bolsonaro tinha, concretamente, para alegar que havia fraude nas eleições, nas urnas e que os ministros do TSE estariam direcionando as eleições.

    Ao invés de responder com algum elemento concreto, Bolsonaro apontou falas de outros políticos, no passado, com críticas às urnas e seu histórico de defesa pelo voto impresso na Câmara dos Deputados.

    Também citou relatório de peritos criminais federais com críticas ao sistema eleitoral, apesar de, ainda em 2021, a Associação Nacional dos Peritos Criminais Federais (APCF) ter publicado uma nota em que afirmava que seu trabalho tinha como objetivo "buscar o contínuo aperfeiçoamento das urnas eletrônicas" e que "a identificação de falhas e vulnerabilidades não permite afirmar que houve, há ou haverá fraudes nas eleições".

    Bolsonaro chegou até mesmo a citar o que vê como feitos de seu governo, mas não trouxe nenhuma prova que fundamentasse suas acusações.

    Minutas apreendidas

    Estado de defesa: Em janeiro de 2023 foi encontrada na residência do ex-ministro da Justiça, Anderson Torres, uma minuta prevendo a decretação de estado de defesa no TSE e a criação de uma Comissão de Regularidade Eleitoral para apurar a "conformidade e legalidade do processo eleitoral"

    Estado de sítio: Já em junho do mesmo ano, veio a público que a Polícia Federal também tinha encontrado um arquivo no celular de Cid que tratava da decretação de estado de sítio. Meses mais tarde, em fevereiro de 2024, documento de mesmo teor foi apreendido na sede do PL –segundo Bolsonaro sua defesa tinha enviado a ele o arquivo encontrado com Cid para ele ficar a par da investigação.

    O que de mais surpreendente surgiu no interrogatório dos réus do núcleo principal da trama golpista —Jair Bolsonaro (PL) e sete ex-auxiliares diretos— foi o clima ameno, quase cordial, que predominou nas audiências do Supremo Tribunal Federal.

    Quem esperava alguma altercação verbal entre Bolsonaro e o ministro relator do caso, Alexandre de Moraes, deparou-se com troca de urbanidades salpicadas por momentos de bom humor.

    Ao que parece, os réus já assimilaram que uma sentença condenatória é praticamente inevitável e se concentram em outros objetivos, como dosimetria da pena e regime de prisão. Nessas condições, não convém indispor-se com o relator.

    A percepção de que os acusados de tramar um golpe de Estado buscam a redução de danos é reforçada pelas estratégias escolhidas por suas defesas técnicas.

    Nenhum dos advogados atacou com maior ímpeto lacunas e contradições nos depoimentos do réu delator, Mauro Cid, nos quais a denúncia da Procuradoria-Geral da República (PGR) está fortemente baseada. Esse teria sido um caminho possível, mas que os experientes defensores visivelmente preferiram evitar.

    Na mesma linha, os depoentes não foram de modo geral orientados a tentar negar o que a essa altura já é inegável, dada a profusão de provas. Pelo contrário, vários deles, incluindo Bolsonaro, admitiram que chegaram a discutir a adoção de medidas como estado de sítio ou de defesa para tentar contrapor-se ao resultado da eleição perdida em 2022.

    Tal reconhecimento é politicamente escandaloso, já que tais medidas implicariam uma utilização desvirtuada e ilegal de mecanismos constitucionais, mas não traz, ao menos não diretamente, problemas penais.

    A tentativa de golpe de Estado só se torna juridicamente punível quando sai da fase de planejamento e preparação e entra na de execução. O argumento dos réus é justamente o de que essas foram ideias informalmente debatidas, que nunca teriam saído do campo da cogitação. Cabe à acusação demonstrar que saíram.

    Da parte de Moraes, a lhaneza provavelmente também é calculada. O magistrado deve passar à história como o juiz que presidiu à primeira condenação de políticos e militares de alta patente que atentaram contra o Estado de Direito no Brasil.

    Entretanto o excesso de heterodoxias de que se valeu —algumas necessárias, mas não todas— tornou-se objeto de críticas, dentro e fora do Brasil, não apenas por parte de bolsonaristas.

    Nesse contexto, é positivo para sua imagem mostrar que não são rancores nem sentimentos de vingança que comandam suas decisões. Ainda mais porque, segundo a apuração, ele seria alvo preferencial de uma ação golpista.

    Em todo caso, é bom para o país que o julgamento transcorra em clima sereno e sem contestação à autoridade do STF, que, cumpre apontar, está fazendo história.(Da Folha de SP)

     

     

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