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    No mundo selvagem, só os fortes sobrevivem; mas, ao cuidar de um, preservamos o grupo

    491 Jornal A Bigorna 14/01/2024 18:50:00

    Margaret Mead (1901-1978) foi uma antropóloga dos EUA e ficou conhecida como divulgadora da ciência. Num dia, perguntaram qual seria o primeiro sinal de civilização. Talvez esperássemos algum dado tecnológico: uma lança afiada ou um sofisticado pote de cerâmica. Ela pensou um pouco e falou de um fêmur de 15 mil anos, encontrado em um sítio arqueológico. O osso estava com marcas únicas de fratura e de cura. O que isso significa? Alguém alimentou aquela pessoa, ajudou a imobilizar a perna (prazo que pode chegar a dois meses), para que ela pudesse andar de novo. O zelo ao próximo, para Mead, era um traço de civilização, de humanidade.

    No mundo animal, a quebra de um osso importante é a morte. Um leão velho não é mais alimentado pelo bando. Na imensa migração do Serenguéti, na África, mamíferos que manquem, tenham infecções ou outros dramas físicos são abandonados. Atrapalham o grupo; não há espaço para redes de solidariedade, fugindo de predadores com pouca comida pela frente. Filhotes saudáveis são protegidos. Vida à frente tem valor no instinto. Vida passada ou danificada deixa de ser relevante. O mundo selvagem tem o rigor espartano: só os fortes sobrevivem.

    Somos diferentes desde que saímos da savana. Como demonstra o fêmur, cuidamos (muitas vezes, não sempre) de indivíduos doentes. Vamos pensar: imagine um teste mundial para avaliar nossa capacidade mínima de sobrevivência. Todo ser humano deveria correr cem metros em, no máximo, três minutos. Veja: nossos corpos mais treinados, campeões olímpicos, fazem esse trajeto em dez segundos, em média. Eu proponho três minutos, tempo para o qual uma caminhada acelerada já seria suficiente. Agora, pense no número enorme de pessoas com problemas de mobilidade, doenças degenerativas das pernas e até os biologicamente saudáveis, porém incapazes de enfrentar a pressão do desafio, devido aos altos níveis de ansiedade. Do total de oito bilhões de pessoas, quantos poderiam participar desse teste simples?

    Minha ideia não defende eugenia. Sugeri apenas um pensamento. Minha avó viveu alguns anos acamada com cuidadores e sem mobilidade. Por que cuidamos dela? Na selva, a generosidade colabora para a extinção. O homem pré-histórico tinha chance de recuperar-se. Minha avó não. Por que tomamos conta de “casos perdidos”?

    Eu invoco amor, sentimento familiar, ideias de futura reciprocidade: já que cuidamos de muitos parentes idosos e doentes, alguém fará o mesmo conosco. É uma doce esperança. Voltando a Mead, somos humanos por este motivo: pelo irracional contido no solidário. Mais: há pessoas que cuidam de estranhos, fora da família. Há muitos que abandonam zonas de conforto e se embrenham em áreas problemáticas, para ajudarem outros seres humanos. Nem todos são religiosos. Por quê?

    Ao criarmos um sentimento solidário inexistente em quase todos os outros animais, partimos de uma ideia religiosa, moral ou até científica. Cuido porque fui ensinado a cuidar. Isso é valorizado pelo grupo (moral), porque serei recompensado por Deus (religioso) ou porque, mesmo doente, alguém tem contribuições a fazer (científico). Vejam o caso de Stephen Hawking (1942-2018): ele tinha uma doença degenerativa grave (ELA) e, mesmo assim, trouxe avanços para a ciência. Alguém dirá: ele já era um astrofísico brilhante quando notou a doença. Sim, mas pessoas com doença degenerativa grave são cuidadas pelos pais e parentes, sem que eles pensem em um Prêmio Nobel.

    Nossa sobrevivência não é mais baseada em habilidade de caça. Entre mamíferos caçadores, como tigres e leões, todo alimento deriva da força e da estratégia. Nós protegemos, em particular, a fraqueza. Em um Titanic selvagem, empurraríamos ao mar mulheres e crianças, mas salvaríamos os homens mais fortes. Os animais não veriam lógica em preservar no bote uma velha senhora aristocrática e deixar à morte homens válidos. Por outro lado, os animais também não fariam distinção social baseada no preço da passagem.

    Se tivéssemos de selecionar 250 pessoas para alguma arca salvadora da humanidade em risco de extinção global, não poderíamos levar apenas jovens férteis. Teríamos de selecionar pelo menos algumas pessoas mais velhas, algumas já sem chance de reprodução, mas que teriam o treinamento indispensável em medicina ou engenharia, por exemplo. Não sobrevivemos apenas pelo colágeno e pelos hormônios. Nossa espécie depende de conhecimento.

    Um osso partido e, depois, curado foi um passo para que nos separássemos dos animais. Mais interessante ainda: se o paciente que foi salvo pelos cuidados do grupo tivesse sido amparado por ter conhecimentos (remédios, armas, fogo, etc.) que não pudessem ser perdidos. Ao cuidar de um, preservamos o grupo. Lobos não fazem isso. Ao comparar a situação destes com a dos humanos, podemos ver que a estratégia do Homo sapiens teve certo êxito numérico. Não somos humanos porque cuidamos de pessoas. Nós somos humanizados pelo processo coletivo de amparo. O humanismo é baseado em cuidar. Valorizar apenas os “fortes” indica eugenia, e nós sabemos onde isso termina... para o fim de toda a esperança.

    *Por Leandro Karnal

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