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    Os pais desnecessários

    3423 Jornal A Bigorna 11/04/2021 11:00:00

    Todo objetivo pedagógico e amoroso é tornar-se irrelevante. Estranho? Vejamos. Ensino meu filho a andar de bicicleta. Posso fazê-lo porque tenho uma habilidade a mais do que ele. Dou conselhos, indico normas de segurança, amparo no começo, consolo nos primeiros fracassos. Minha meta? Que ele ande de tal forma sobre as duas rodas que, felizmente, veja chegar o dia em que minha presença seja inútil. Ensino para poder desaparecer.

    Ao ser professor de qualquer coisa, meu objetivo é me tornar desnecessário. O que vale para o ensino vale para os cuidados com alguém. Corto o bife da criança no começo. Depois de alguns anos, ensino a cortar. Supervisiono o perigoso emprego da faca. Quero autonomia absoluta. Não desejaria estar cortando um bife de alguém de 35 anos. Ensino para sumir.

    Seria pesado dizer que o professor é um mal necessário? Ele é uma ponte para uma determinada etapa. Alguém que ensina é uma pessoa que liberta. O conhecimento nos torna autônomos. Quem nos educa, no fundo, está dizendo: faço isso para que não precise mais de alguém. Saber é emancipador. Reforço para evanescer.

    O que é claro no campo pedagógico, em geral, fica mais instável no campo materno e paterno. Já citei, em crônicas, o pensamento de K. Gibran: “Vossos filhos não são vossos filhos. São os filhos e as filhas da ânsia da vida por si mesma. Vem através de vós, mas não de vós. E embora vivam convosco, não vos pertencem”. A ideia é clara e boa, todavia esconde uma questão incômoda. Qual seria?

    Amar e criar filhos exige uma parte visível: pagar contas, vacinar, cuidar, limpar machucados, matricular, conviver, enfrentar filas em parques de diversão, levantar-se no meio da noite, ajudar nas lições, limpar, defender, vestir, embalar, dar remédios... Essa é a parte evidente da paternidade e da maternidade. É custosa, exige muita dedicação e ocupa quase todo o tempo. Curiosamente, é a parte verificável e executável do contrato invisível entre mães, pais e filhos. Há um desafio maior.

    Gerar vida e cuidar dela implica proximidade. Poucas coisas serão tão vitais na vida de cada uma e de cada um. Impossível estar em projeto desse porte sem um absoluto envolvimento. Dele, decorre a parte mais delicada: você entrega ao seu rebento o poder total sobre sua vida interna e externa. Um filho doente pode desestabilizar toda a sua concentração, derrubar sua agenda e surgir como o único foco no mundo. Uma aluna me disse que seu filho havia sofrido um corte e estava com uma hemorragia. Ela o colocou no carro e disparou para o hospital em uma velocidade que ignorou qualquer obstáculo ou multa. Naquele momento, pontos na carteira, andar pelo acostamento, dirigir de forma perigosa deixaram de apresentar qualquer relevância. O sangue do filho gritou mais alto que tudo.

    Li, uma vez, sobre um pai e uma mãe brasileiros no Parque Nacional em Everglades, Miami. O filho caiu da bicicleta dentro do fosso. Um crocodilo enorme abocanhou a criança de sete anos. O homem saltou na água e segurou a boca do animal. A mulher acompanhou e enfiou dedos na boca da fera para que largasse o menino. O animal desistiu da presa já abocanhada e a criança se salvou. O caso teve um final feliz. O ato foi instintivo e perigoso. Luto com um animal maior do que eu porque algo muito mais importante está na boca do predador: meu filho. Esse é o desafio da paternidade e da maternidade: você, por via direta e indireta, confere a outra pessoa (seu filho) o poder absoluto sobre sua existência. Gerar vida é um ato de amor e de humildade. Aceito deixar de ser o centro. Entrego minha alegria ao sorriso da criança que gerei. Entrego minha angústia ao mesmo ser em perigo. Luto contra o trânsito ou crocodilos se precisar. Arrisco minha vida. Só uma vida importa: a do meu filho.

    Como dizer a este grau de amor que deve se tornar desnecessário? Que o objetivo do amor é libertar e devolver a vida, já autônoma, ao mundo? Que um dia o ser amado deve estar forte e adulto a ponto de levar seus próprios filhos ao hospital ou lutar contra as feras que o ataquem? A pior metáfora: sou uma escora de madeira para a construção fresca e frágil. Em algum tempo, devo desaparecer e ser retirado para que a obra surja sozinha, de pé, sem precisar de escoras. Meu supremo triunfo é me afastar e não ser mais importante. O filho ou a filha que saem de casa e não precisam mais de mim coroam todo o esforço pedagógico, material e amoroso da minha vida. Dali em diante, ser útil é um desejo do meu narciso, uma ferida da minha vaidade, não mais do ciclo de vida. Essa é uma meta elevadíssima.

    Assim, encerrando, gerar uma vida é um triplo desafio. A vida nascente é cara e trabalhosa. É uma tarefa de tempo integral e longa. O segundo desafio é a preocupação absoluta de alguém que, pela sua importância amorosa, dominará minha vida. O terceiro desafio é que o sucesso (nas etapas anteriores) implica liberdade. Filhotes bem cuidados abandonam o ninho em algum momento. A ausência diz: parabéns! Você fez a sua parte bem! A plenitude do amor é uma coisa complexa. Boa semana para pais, mães, filhos e filhas.

    Apenas um cuidado importante: os crocodilos também possuem filhotes...

    Por Leandro Karnal, O Estado de S. Paulo

     

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