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    Se você acredita que está sempre certo, algo está errado

    573 Jornal A Bigorna 18/12/2023 18:40:00

    Ignatius J. Reilly, o protagonista do romance "A Confraria dos Tolos", de John Kennedy Toole, tem certezas absolutas sobre tudo e todos. Mimado e intelectualmente pretensioso, Ignatius tem uma inabalável convicção na sua visão do mundo. Só que muitas das suas certezas não passam de meros delírios.

    O livro, escrito em 1980, é uma sátira social perfeita para refletir a realidade que vivemos. Estamos rodeados de Ignatius, que se reproduzem como vírus. Acreditam tanto nas suas convicções —notadamente nas que escolhem acreditar— a ponto de desafiar a realidade. Quando menos fundadas, mais obstinadas são.

    A ânsia por emitir opinião sobre tudo —elemento obrigatório hoje para "fazer parte"— equaliza ideias e pessoas, achismos e certezas. Informações superficiais e preconceitos agem como elementos formadores de opinião. Todos berram por ideais, mas são incapazes de explicar em voz baixa os seus fundamentos. A preguiça intelectual em buscar uma visão histórica os faz ter uma visão histérica.

    O diálogo é uma prática em extinção; a exposição de ideias, uma atividade de risco. Emitir uma opinião "errada" no lugar errado é tão arriscado quanto se sentar na torcida de um time vestindo a camisa de seu oponente. Apenas à divergência do outro não se aplica a liberdade de pensamento. Resultado: rebanhos de carcaças ambulantes ecoando slogans, presos nas posições e não nas ideias.

    As certezas são cláusulas pétreas e quem ousa delas discordar é automaticamente relegado ao posto de inimigo. Mais do que uma questão política ou ideológica, trata-se sobretudo de uma questão moral. O pensamento é automático: quem não pensa igual a mim é imoral, estúpido ou as duas coisas. As desavenças são resolvidas pela força, pela destruição, pelo ódio. Assim, se obtém carta branca para legitimar o racismo, o antissemitismo, a misoginia, a homofobia e tantas outras idiotices, tão temerárias quanto a fobia à alteridade.

    Quem não é racional para questionar as suas certezas, também não o será para acreditar nelas. Se a discordância dos outros atinge de frente a identidade da pessoa, onde estará a consistência dessa identidade?

    A busca pelo conhecimento não pode ser freada por crenças e preconceitos. O desprezo sumário pelo diferente gera uma deterioração semântica e uma falsa sensação de liberdade de expressão. É o que se vê nas ruas, nas universidades, nos cancelamentos, nas censuras.

    John Stuart Mill, no clássico ensaio "On Liberty", escreveu: "Só por meio da diversidade de opinião, no atual estado do intelecto humano, há uma oportunidade de jogo limpo em todos os aspectos da verdade".

    Novas verdades inevitavelmente sempre se apresentarão no nosso percurso. Somos dotados de um cérebro estruturalmente perfeito, constituído por um tecido mole que lhe confere flexibilidade e plasticidade. Mas os Ignatius da modernidade têm miolos mais enrijecidos do que os crânios que os abrigam. Mal sabem eles que é justamente a maciez do cérebro que absorve os choques e os protege de danos físicos. Preferem mesmo é bater cabeça e provocar concussões nas próprias mentes para que possam continuar a viver protegidos na confraria dos tolos.(Da Folha de SP)

    *Por Becky S. Korich

     

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