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    Contos do Zé #4 - Elésio é um macho raiz, mas…

    1857 Jornal A Bigorna 25/01/2020 12:00:00

    Palanque do Zé

    Elésio Pedroso é um senhor no auge dos seus 73 anos, magro, com uma barba branca sempre por fazer e de olhos azuis da cor do mar. Sim, ele nasceu no último ano da Segunda Grande Guerra Mundial, mas se fosse uns 20 anos antes, poderia ter lutado e acabado com a raça daquele tampinha do Hitler!

    Em suma, Elésio era um sujeito que poderia ser classificado como macho raiz, daqueles que começou a trabalhar na roça com 9 anos e aos 18 já tinha sua própria casa, mulher e filhos. Por falar em esposa, se casou com a Dona Erminda quando ela tinha 16 anos e ele 17, ainda no sítio dos seus pais.

    Nesse ano, eles já comemoraram 57 anos de uma união que lhes rendeu 8 filhos, 27 netos e 5 bisnetos. Elésio e Erminda gostam quando todos podem comer sob o mesmo teto, mas isso é cada vez mais difícil, pois cada um tem sua própria vida. Quem mais falta aos Natais é o neto Carlos, que se tornou correspondente de guerra do jornal O Estado de São Paulo e atualmente está na Síria, mas já passou por lugares tão ruins quanto, em especial Iraque, Israel, Palestina e Paquistão.

    Apesar de sempre faltar das Ceias Natalinas, Elésio se enche de orgulho quando fala de Carlos, pois seu neto predileto é um verdadeiro macho. Sempre que possível, gosta de contar a vez em que ele quase foi implodido por uma mina terrestre.

    Elésio e Erminda vieram para a cidade quando as coisas já não estavam mais dando certo no sítio. Isso foi em 1974. E, apesar disso, Erminda ainda se recusa a usar tecnologia. E não me refiro a tablets, smartphones ou computadores, mas sim a ferro de passar roupas elétrico, liquidificador ou fogão à gás. Para ela, as coisas feitas “do jeito antigo” são melhores e mais gostosas. Existe algo melhor do que um café coado no coador de pano? Não para Dona Erminda...

    Aliás, Dona Erminda tem dois passatempos prediletos. O primeiro é ir à Igreja Matriz de Nossa Senhora das Dores. O segundo é falar das coisas do passado.

    Quando deixaram o sítio, Elésio trabalhou uns tempos como servente de pedreiro, mas aquilo era pra gente mais nova e, portanto, com mais vigor físico. Ele se descobriu mesmo foi como taxista, ao comprar um ponto no Largo do Mercado após ouvir conselhos de Joaquim, o português da padaria Central. Isso foi em 1976.

    Sempre que possível Elésio gosta de usar sapatos de camurça, calça jeans, cinto de couro devidamente acompanhado de um coldre - também de couro - para o seu canivete Bianchi, boné de lojas de materiais para construção e um relógio Citizen antigo, além de uma camiseta com a inscrição: “O que Jesus faria?” De acordo com ele, a peça ajuda a iniciar uma conversa com seus clientes. Ele realmente detesta gente que não conversa.

     

    - É claro que a pessoa está me pagando pela corrida, mas custa conversar, poxa?

     

    Nesses 42 anos de serviços prestados, teve vários carros e, apesar de agora dirigir um Toyota Corolla, o considera carro de mulherzinha. Ele gostava mesmo, quando as coisas eram mais simples e as conversas mais sinceras.

    Naquele tempo, se podia transportar passageiros num Opala de 8 válvulas prateado. E ninguém reclamava quando ele fumava durante os trajetos. O único problema era que o carro bebia mais gasolina do que ele cerveja, mas na época isso não era um grande problema, já que o litro saía por meros centavos. Tanto o da gasolina, quanto o da cerveja.

    Apesar de ser um cara religioso e de não querer fazer maldades para “nenhum ser vivo que rasteja pela Terra”, Elésio carrega no porta-luvas um 38 “canela seca” desde 1986. É que, com a saída dos Militares do Governo, os vagabundos passaram a dominar tudo. Conforme sempre diz, “a esquerda acabou com o Brasil”.

     

    - Antes a mãe dele chorando do que a minha, tá ok? Essa gente não pensa duas vezes para te transformar em um cara a ser lembrado!

     

    Aliás, desde que votou no Bolsonaro ainda no primeiro turno, apesar de “não ser mais obrigado a votar”, como faz questão de ressaltar, incorporou ao seu vocabulário a expressão “tá ok” em homenagem ao único homem que considera ser capaz de “dar um jeito nas coisas” para que seus netos e bisnetos possam “andar tranquilos pelas ruas”.

    O currículo másculo raiz de Elésio é realmente invejável. Jamais deixou faltar comida em casa, todos os seus descendentes são gente de bem e ele jamais havia traído sua velha. “Ela tá só o pó, mas é minha”, costuma dizer em tom de brincadeira.

    No alto dos seus 73 anos, era de se esperar que comesse somente coisas saudáveis. Mas esse não é o caso. Sua alimentação é baseada em carnes gordas, pimentas, calabresa e bacon, tudo besuntado em maionese Arisco, sempre que possível. Não é muito chegado em doces, mas caso fique para a sobremesa, costuma escolher os caseiros, em especial doce de abóbora, cidra e pudim.

    Quando chega do trabalho Elésio vai diretamente tomar banho. Após, aprecia uma única dose de Velho Barreiro enquanto fuma seu cachimbo pensando na vida. Esse é o tempo necessário para que Erminda sirva o jantar.

    Após esse momento fundamental - que nos últimos anos se tornou somente dos dois - ele se despede e vai para o quarto, onde aos pés da cama, se ajoelha para agradecer à Deus por mais um dia. Pede também pela saúde dos familiares, pela alegria dos amigos e clama para que nunca lhe falte o básico.

    Assim que se deita, o sono não tarda a chegar. Aliás, suspeita que o peso da idade esteja finalmente cobrando seu preço, pois nos últimos anos, sequer consegue ficar deitado e acordado ao mesmo tempo.

    Quando acorda, sempre às 4:30 da madrugada, inevitavelmente ouve o barulho de Erminda mexendo as panelas e sente o cheiro de ovos com bacon sendo fritos no fogão à lenha. Junto com uma boa caneca de café preto e sem açúcar, tal refeição o faz aguentar firme e forte até a hora do almoço, às 11.

    Elésio também é querido por todos em sua cidade, a pequena Vila Verde. Tanto que ganhou um título de Cidadão Honorário da Câmara Municipal e outro de Amigo da Polícia. Fora casamentos e formaturas, essas foram as duas únicas oportunidades em que ele usou terno.

    Como se vê, a conduta de Elésio é irretocável. Ser pai responsável, marido amoroso e cidadão exemplar, são apenas algumas das suas inúmeras qualidades. Ser um macho raiz também é um traço marcante em sua personalidade.

    A única mácula que Elésio traz em seu currículo vem da área médica, e não tem nada a ver com o exame de toque, pois “a gente prova a nossa masculinidade na cama, e não no hospital”, costuma dizer para os seus amigos que zombam de quem vai ao proctologista de tempos em tempos...

    A única vergonha de Elésio, que não teme sequer a própria morte “a essa altura do campeonato”, é o seu pavor das agulhas. Sempre que precisa tirar sangue, tomar soro ou receber a dose anual de uma vacina qualquer, sofre com insônia, sua frio e perde toda a costumeira alegria de viver. Sua vida se torna cinza até que aquilo tudo se acabe.

    Quando está na fila do Posto de Saúde e sabe que tem um encontro com a maldita agulha, se sente como um porco sendo levado para o abate: Não deixa de seguir o seu caminho, mas sabe que o fim está próximo.

    Quando chega sua vez, cumprimenta cordialmente a moça que vai lhe furar, repuxa a manga da camiseta e respira fundo esperando pelo pior, olhando fixamente para a área a ser atingida. Ao menos quer saber que horas será golpeado.

    Ao sair do Posto de Saúde, mais uma vez respira aliviado por não permitir que ninguém conhecesse seu único ponto fraco, pois já é um senhor com 73 anos, poxa vida. Ademais, nunca custa lembrar, é um bisavô de família. E, mais do que tudo, tem uma reputação a zelar.

    Não, ninguém jamais conhecerá seu calcanhar de Aquiles. Nem a amada Erminda.

     

    *Por José Renato Fusco. É Advogado, Jornalista e Escritor

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