O delegado Ruy Ferraz Fontes sabia que estava jurado de morte. Sabia também que, mais cedo ou mais tarde, esse acerto de contas viria. Só não sabia como, nem quando.
Na tarde de segunda-feira (15), esse dia chegou. Foi assassinado a tiros de fuzil no caminho de casa, na Praia Grande, litoral de São Paulo, onde vivia desde que se aposentou e passou a ocupar uma função na prefeitura.
Mas Ruy nunca foi apenas um servidor municipal. Sua trajetória profissional atravessa décadas de enfrentamento direto ao crime organizado. Ainda nos anos 1990, especializou-se no combate a quadrilhas de assalto a banco. Depois, foi um dos primeiros a entender que o PCC (Primeiro Comando da Capital) havia ultrapassado os limites dos presídios, estruturando uma rede criminosa com capilaridade nas ruas, controle de territórios e envolvimento com negócios bilionários.
Como delegado-geral da Polícia Civil de São Paulo, ocupou o cargo máximo da instituição. Ganhou notoriedade ao liderar investigações contra a cúpula do PCC e ao tornar públicos, com clareza e firmeza, os riscos representados pela facção. Sua disposição em se expor à imprensa, em nome da transparência, ampliou sua autoridade, mas também o transformou em alvo.
Na última entrevista concedida à rádio CBN, poucas semanas antes de ser morto, revelou que não contava com nenhuma estrutura de segurança, mesmo sabendo que podia ser assassinado a qualquer momento. Disse viver sozinho na região onde a facção tem forte presença. Era, segundo suas próprias palavras, uma morte anunciada.
O promotor Lincoln Gakiya, também jurado de morte e especialista no enfrentamento ao PCC, já havia alertado que Ruy estava na mira. Após o crime, foi taxativo: a participação do crime organizado é evidente. E completou que um profissional que dedicou mais de 40 anos ao combate à criminalidade não poderia estar desprotegido.
Aposentado, Ruy havia se distanciado da linha de frente, mas nunca deixou de ser visto como uma ameaça por aqueles que combateu. Entre seus alvos históricos estava Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola, chefe máximo do PCC, contra quem conduziu algumas das principais operações.
Foi morto dentro do próprio carro, sem blindagem, em um fim de tarde. As imagens da emboscada mostram os criminosos manuseando o fuzil com destreza e intimidade, como se carregassem um celular nas mãos. Foram mais de dez disparos certeiros, que revelam não apenas o grau de planejamento da execução, mas também a ousadia de quem já não teme mais o poder público.
Ruy não foi o primeiro a morrer lutando contra o crime. Em 2003, o juiz Antônio José Machado Dias, conhecido como Dr. Machadinho, corregedor de presídios e responsável por investigações sobre o crime organizado, foi assassinado quando saía do Fórum de Presidente Prudente. Dois anos depois, em 2005, José Ismael Pedrosa — ex-diretor da Casa de Detenção do bairro do Carandiru durante a rebelião de 1992 que terminou com a morte de 111 presos — foi executado com dez tiros ao sair de um churrasco em Taubaté.
No mês passado, em agosto, o promotor Amauri Silveira Filho, de Campinas, teve sua morte encomendada por integrantes do PCC. O plano foi descoberto a tempo e, apesar de apenas alguns dos envolvidos terem sido presos, ele não se intimidou e continua trabalhando no Gaeco (Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado).
A escalada da violência institucionalizada lembra os caminhos trilhados por países como Colômbia e México, onde juízes, promotores, policiais e jornalistas passaram a ser executados por atrapalhar interesses do crime. No Brasil, o roteiro se repete.
A pergunta que fica, entre uma emboscada e outra, é a que ninguém mais pode ignorar: quem protege quem nos protege?
*Por Valmir Salaro