Desde o fim da pandemia de covid-19, declarado em maio de 2023, se discute a possibilidade de uma nova crise sanitária global em um futuro não tão distante. De acordo com especialistas ouvidos pelo Estadão, não é nem uma questão de “se” haverá outra pandemia, mas “quando” ela acontecerá — e qual será o patógeno responsável.
“É inevitável”, crava Ralcyon Teixeira, diretor médico do Emílio Ribas, hospital referência na área de infectologia. “Temos certeza de que vai ter (uma próxima pandemia). Resta saber quando”, concorda a coordenadora de Vigilância em Saúde e Laboratórios de Referência da Fiocruz, Tânia Fonseca.
“Observamos o aumento da ocorrência de epidemias, o que é um passo para que pandemias aconteçam”, afirma a cientista e pesquisadora Lívia Caricio, diretora do Instituto Evandro Chagas (IEC), instituição de pesquisa e vigilância em saúde na Região Amazônica. Ainda não é possível precisar quando um novo surto deve acontecer, mas as pesquisas estimam que será nas próximas décadas, ela diz. “A previsão não é para daqui 50 anos, é para um período bem próximo, daqui a poucos anos.”
A Organização Mundial da Saúde (OMS) também já se manifestou sobre o assunto, na mesma linha dos pesquisadores acima, e reforçou que a preparação deve ser agora para uma resposta mais oportuna do que foi com a covid-19.
“O fim da covid-19 como emergência de saúde global não é o fim da covid-19 como uma ameaça à saúde mundial. A ameaça de surgir uma nova variante capaz de provocar novos surtos de doença e morte permanece. E permanece também a ameaça de que apareça outro patógeno com potencial ainda mais letal”, afirmou Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor da OMS, em discurso de 2023.
São vários os fatores demográficos e sociais que facilitam o surgimento de novos vírus e outros vetores e aceleram o risco de eles se espalharem globalmente:
* Aumento da população mundial;
* Alta densidade populacional;
* Dificuldades com higiene básica e baixo acesso a medidas de saúde;
* Pobreza e desigualdade social;
* Avanço sobre áreas de mata/natureza;
* Facilidade e rapidez na movimentação de pessoas no mundo.
Além de todos esses elementos, que contribuem para a disseminação mais rápida e ampla de patógenos, há ainda um aspecto ambiental: as mudanças climáticas.
O calor extremo, consequência do aquecimento global, afeta o comportamento dos vírus, podendo aumentar a capacidade de eles se multiplicarem e causarem infecções. Tânia Fonseca, da Fiocruz, lembra da epidemia de dengue em 2024, quando houve recorde de casos no Brasil. A doença ganhou tamanha proporção em parte por causa do aumento das temperaturas, que acelera o ciclo de vida do vetor, o Aedes aegypti.
“Aquele ovo que demorava para eclodir está muito mais rápido. Se antes o mosquito só ‘gostava’ de água limpa, agora ele eclode em qualquer ‘aguinha’”, explica a médica. “Atualmente, só conseguimos fazer medidas de mitigação ou adaptação das mudanças climáticas, porque é praticamente irreversível a gravidade do cenário.”
No Brasil, a Região Norte é a mais vulnerável ao surgimento de novas doenças por causa da combinação de clima, bioma e ação humana. “A Amazônia é um ecossistema muito diferente, tem umidade e chuva, clima tropical e calor. Isso, por si só, já amplia a possibilidade de crescimento de micro-organismos”, diz Tânia.
Soma-se a isso a intervenção humana na região, que causa transformações ambientais irreversíveis e aumenta o risco de doenças. “Quando aquele ecossistema está equilibrado, o ciclo se encerra nele próprio. Na medida em que o homem adentra a mata, com desmatamento, clareiras ou garimpos, os micro-organismos ou vetores daquela região começam a ter no homem um hospedeiro acidental”, explica a coordenadora de vigilância em saúde da Fiocruz.
Vírus respiratórios são o maior risco
Os especialistas ouvidos pelo Estadão concordam que a maior probabilidade é de que a próxima pandemia seja causada por um vírus respiratório — por causa do histórico global de pandemias por esse tipo de patógeno e por sua rápida capacidade de disseminação.
Seu impacto depende da capacidade de dispersão do vírus, da virulência e da suscetibilidade da população, além da existência ou não de uma vacina. Um vírus novo, que encontre muita gente vulnerável, como aconteceu com a covid, pode causar grandes prejuízos.
“São os vírus que têm a capacidade rápida de se instalar e se espalhar pelo mundo em um curto espaço de tempo. E, dentro desse grupo, os respiratórios apresentam maior potencial de disseminação”, afirma o diretor do Emílio Ribas, Ralcyon Teixeira.
“Na história, temos a circulação de vírus respiratório com potencial e caráter pandêmico. Em 2009, teve o influenza. Já houve também a ameaça do MERS-CoV, que achavam que teria potencial pandêmico, mas não teve. E a gripe espanhola (1918-1920), que dizimou parte da população da época”, lembra Tatiana Lang, diretora do Centro de Vigilância Epidemiológica da Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo — órgão ao qual o Instituto Adolfo Lutz (laboratório de referência em saúde pública) é vinculado.
Atualmente, a Fiocruz monitora mais atentamente alguns vírus respiratórios: coronavírus, influenza e sincicial respiratório (VSR, responsável pela maioria dos casos de infecções do trato respiratório inferior em bebês). A instituição de pesquisa biomédica também está em alerta para o sarampo, por causa da baixa cobertura vacinal.
Quais outros patógenos são monitorados?
Além dos vírus respiratórios, os cientistas estão de olho nas arboviroses, doenças virais transmitidas por artrópodes, como mosquitos e carrapatos.
“Antes, a gente tinha regiões muito limitadas de ocorrência dessas doenças, que eram as regiões tropicais, onde as condições de alta temperatura e pluviosidade beneficiam a procriação dos mosquitos. Mas, hoje, o cenário mudou, (os mosquitos aparecem em) áreas que antes eram consideradas zonas temperadas. Então, a possibilidade de ganharem uma dispersão maior e de talvez causarem uma pandemia é real“, explica Lívia Caricio, do Evandro Chagas.
A OMS publicou, em 2024, o relatório “Priorização de Patógenos”, que aponta quais vírus e bactérias têm características capazes de desencadear uma emergência sanitária internacional — seja pela forma como se espalham, pela gravidade das infecções que causam ou pelo histórico de surtos explosivos. O documento inclui arboviroses como dengue, febre amarela e zika.
Na lista dos agentes considerados de alto risco também aparecem outros vírus, como ebola Zaire, ebola Sudão e Marburg, todos com altas taxas de letalidade, além do mpox e da varíola.
No Brasil, a febre Oropouche, uma arbovirose transmitida por mosquitos, é monitorada pela Fiocruz. O vírus foi identificado na Região Norte em 2023 e 2024 e rastreado em direção ao Sudeste.
Estamos preparados para as próximas pandemias?
O processo de preparação passa pela detecção precoce de riscos de novos patógenos e de surtos epidêmicos no País, o que depende de um sistema de vigilância tripartite, isto é, que envolve as redes municipal, estadual e federal. O alerta para a possível chegada de um novo patógeno acende em diferentes frentes:
* Análise preditiva: observatório com estatísticos, geógrafos e matemáticos que cruzam dados climáticos com áreas de risco para a saúde;
* Alerta clínico hospitalar: nos hospitais de referência, alertas podem ser acionados por “doenças respiratórias” que mudam de perfil, como o surgimento de um número elevado de casos fora do padrão sazonal ou com comportamento diferenciado;
* Vigilância sentinela e laboratorial: a detecção precoce é feita primariamente por meio das vigilâncias sentinelas, unidades de saúde selecionadas que coletam amostras para representar a circulação de patógenos em determinadas regiões;
* Sequenciamento genômico: em laboratórios, é feito o sequenciamento do genoma do patógeno para identificar sua origem e possíveis rotas de introdução;
* Central de alertas: são Centros de Informações em Vigilância e Saúde que funcionam 24 horas para monitoramento e investigação de ocorrências inusitadas.
Além disso, o governo federal tem criado políticas para adaptar o sistema de saúde às ameaças previsíveis, especialmente em face das alterações climáticas e ambientais, afirma Lívia, do Instituto Evandro Chagas, administrado pelo Ministério da Saúde.
O que aprendemos com a covid-19 e como avançar?
Como “aprendizados” da pandemia, Tatiana Lang, do Centro de Vigilância Epidemiológica da Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo, cita o fortalecimento da vigilância laboratorial. “Não só a aquisição de novos equipamentos, novas metodologias, mas também essa ampliação e esse olhar mais localizado nas nossas vigilâncias sentinelas para abrir o leque de análises para que identifiquemos precocemente algo que esteja circulando”, afirma.
Lívia, do Evandro Chagas, por sua vez, cita que todos os laboratórios centrais (Lacen) do Brasil têm, hoje, um equipamento de sequenciamento genético, reflexo do período pandêmico.
Apesar dos avanços, ainda há lacunas no sistema de prevenção a novas pandemias — desde a estrutura, equipe e equipamentos, até a coordenação das instituições, segundo Ralcyon Teixeira, do Emílio Ribas. Ele reconhece que o sistema de saúde teve algumas melhorias durante a pandemia, mas lamenta que o estado de preparação e ativação constante da rede de saúde não tenha sido mantido. Nesse sentido, “voltamos para uma era pré-pandemia”.
“Ainda falta, às vezes, coordenação entre município, Estado e União, uma conversa entre vigilância e assistência e os planos de ação para uma coordenação melhor. Porque às vezes um fica esperando o outro, e acaba não saindo”, diz o médico.
Teixeira cita ainda a falta de planos de contingência de conhecimento comum pela sociedade civil com recomendações para se preparar para uma futura nova pandemia. “Não é só prevenção, é preparação também. A covid-19 nos ensinou que a hora que chegar uma nova ameaça, temos de estar mais estruturados.” Outros países têm esses protocolos de resposta a desastres e casos inusitados mais bem definidos, segundo o infectologista.(Do Estado)













