
Ela vê as coisas mais escabrosas na internet promovidas por adolescentes. E, diante disso, o que mais preocupa a juíza Vanessa Cavalieri, responsável por julgar todos os casos envolvendo menores infratores no Rio, é a ingenuidade das famílias.
Criadora do Protocolo Eu Te Vejo, de prevenção à violência nas escolas, a juíza da maior Vara da Infância e Adolescência do Brasil roda o país tentando alertar as famílias sobre os riscos do mundo digital, os cuidados necessários e pressionando para que as responsabilidades sejam assumidas.
Na entrevista a seguir, a primeira da série sobre adolescência do GLOBO que trará conversas com cinco especialistas ao longo da semana, ela explica qual o perfil das vítimas e como são dominadas, quem são os criminosos e garante que, se você não deixa seu filho sair à rua à noite sem supervisão, não pode deixá-lo sozinho no quarto com um computador.
A senhora está assustada?
Estou um pouco menos do que a maioria. Acho que já estou vendo isso há muito tempo, então me assustou mais quando chegou. O que mais me preocupa hoje é o quanto as pessoas estão distraídas. Tive agora uma audiência pública do projeto de lei do PL 2628, e falei: Estamos numa guerra, e quem não entendeu que é uma guerra, é porque não sabe o que está acontecendo. Por exemplo, tem mãe que está falando assim: "não é muito invasivo olhar o celular do meu filho?" Enquanto ela pensa se é ou não, o Discord e a Meta contrataram um lobista que está indo de gabinete em gabinete de deputado entregar um panfleto fofo, super bem feito, dizendo para eles não passarem a lei. Tem família lutando com aquela raquetinha de matar mosquito, e os caras estão com tiro de bazuca. Então, o que me assusta mais é a falta de dimensão do problema, que não é só para criança e adolescente, mas para a humanidade.
Então vamos ao básico: qual é a guerra? O que está acontecendo?
É o seguinte: o ambiente virtual é muito perigoso e está colocando crianças e adolescentes em risco de sobrevivência. Acho que o Jonathan Haidt [psicólogo e pesquisador sobre o tema] mostra bem isso no livro dele "A Geração Ansiosa": os números que temos de mortes, suicídio, automutilação, adoecimento de saúde mental e até homicídios que nascem na internet e são praticados por adolescentes contra outros adolescentes têm aumentado. Você tem ali grupos extremistas, aumento da misoginia, ataques sendo combinados. Vou dar até um passo mais atrás, tem uma outra origem na internet, que é o quanto as relações estão adoecidas por causa da substituição do relacionamento olho no olho pelas telas.
A lei que proíbe o uso do celular nas escolas ajuda a mudar isso?
Eu fui super ativa na defesa da lei. Tinha escola que falava "mas já não pode usar celular na sala de aula, só no recreio". O problema é o recreio, a sala de aula eu não estou nem aí! É mais importante! Porque se ele usar o celular na aula de matemática e tirar nota baixa, uma hora ele vai dar conta daquilo. Mas e o olho no olho que você não teve no recreio? E a conversa que não teve, como recupera? Como recupera um ano em que você, em vez de estar conversando, brincando, beijando, brigando, estava olhando o celular? Não recupera nunca mais, aquilo fica um vácuo. Falta pertencimento, falta conexão. Depois surgem panelas do Discord [encontros ao vivo na rede] propondo pegar uma menina e fazê-la de escrava, obrigá-la a se cortar... Eu peguei um caso agora em que obrigaram a menina a abrir a barriga do sapo, botar o sangue no copo e beber. Outra que teve que enfiar uma lâmina na vagina. Isso não cai do céu, não vem do nada, isso foi construído ao longo de uma infância e uma adolescência desconectada do afeto. Está tudo relacionado.
Como é que acontece essa dominação sobre as meninas?
É muito elaborado. Eles escolhem as vítimas com um critério muito inteligente: as mais vulneráveis. Aquelas que dizem que já sofreram bulimia e anorexia, que se acham feias, que são gordas, que sofrem bullying, que dizem que os pais não dão atenção ou que se cortam. Eles escolhem meninas frágeis emocionalmente pelas redes sociais delas, porque elas postam isso lá no TikTok, no Instagram, ou às vezes vão jogar Roblox, de lá vão para o Discord. Aí um deles começa a criar vínculo com ela, elogia. Por exemplo, tive um caso que ele falava “eu adoro menina gordinha”, aí a menina gordinha de 13 anos, que não ouve de ninguém que é bonita, é seduzida, cria um vínculo. Eles elogiam, conversam, dão atenção, começam um relacionamento online, e aí, em algum momento, pedem nudes como uma prova de amor. E ela, super envolvida, manda. Eles pagam um serviço de checagem de dados para descobrir toda a vida dela, ou hackeiam. E aí começam a chantagear, falam "tenho aqui a foto do seu peito, e seu nome verdadeiro é tal, você estuda no colégio tal, seu pai trabalha em tal empresa, o chefe do seu pai é fulano, se você não fizer o que eu estou mandando, eu vou mandar essa foto aqui para sua escola toda, para o seu professor, para o chefe do seu pai". São meninas de 12, 13 anos, elas caem na conversa deles e começam a fazer o que eles querem. E quanto mais elas fazem, mais eles têm material para chantagear, e aquilo vai virando uma bola de neve.
Você vê um traço característico nesses adolescentes que cometem crimes?
Sim. A grande maioria são meninos, quase não tem menina envolvida. Tudo adolescente, assim, de 13, 14 anos. Nem chega a 17 anos, são muito novos. Muitos são aliciados via Tik Tok. Outra forma como eles chegam: vão jogar Roblox, ou League of Legends, e jogam na call do Discord. Às vezes são jogos inocentes, mas a maioria é de jogos mais violentos. O Steam também tem jogo violento, tinha um cujo objetivo era estuprar o maior número de mulheres possível. A legenda do jogo era “Nunca aceite não como resposta”. E tinha lá meninos de 11, 12, 13 anos jogando. Aí, no chat, alguém começa a conversar, chama para uma panela com eventos e são nessas calls que fazem atos de violência extrema. Às vezes a criança ou o adolescente vai porque ficou curioso. E vão sendo enredados pelo grupo. Por que tem muitos adolescentes que não caem nesse papo? Porque têm amigos na vida real, têm programas com a família, não estão excluídos. Esses meninos estão numa situação de total isolamento. Não têm amigos. Sofrem bullying. São invisíveis na escola. São invisíveis dentro de casa. Como um menino fica 12 horas no computador e os pais acham normal? Os pais acham que não tem nada de mais, porque ele está dentro do quarto, então está seguro.
Como na série 'Adolescência'.
Exatamente. Mas o lugar mais perigoso onde um adolescente pode estar sozinho hoje em dia é nas redes sociais. O lugar mais perigoso é dentro do quarto. É mais seguro na rua do que no quarto. No quarto, com computador e celular, é como se tivesse uma porta da rua aberta para dentro, deixando entrar qualquer estranho para falar com seu filho sem você saber. Qual o seu medo de deixar seu filho na rua sozinho? Ele ser assaltado, aliciado, sequestrado? No quarto com computador é mais perigoso. Se você não sabe o que ele está fazendo, se não tem nenhum controle, não tem nenhum monitoramento, não tem nenhum filtro, qualquer um entra. Então quando você bota um monitoramento parental, um aplicativo, regras de bloqueio, é como se essa porta estivesse trancada. Dá para entrar? Dá, mas é mais difícil.
Os criminosos são muito envolventes.
Eles entram de uma forma muito hábil, e os adolescentes, as crianças, acham que vão perceber que alguém é um criminoso. Quando eu vou fazer palestra para os mais novinhos, eu pergunto “como você pode descobrir que está conversando com um estranho”? Eles são muito ingênuos, falam "eu peço uma foto da pessoa”, “eu olho o perfil”, “se ele estiver seguindo meus amigos, é porque é a pessoa mesmo”. Aí eu respondo: mas ninguém pode fazer um perfil fake com a foto fake e seguir seus amigos? “Eu posso fazer uma chamada de vídeo.” Mas e a inteligência artificial? Aí não percebem e são aliciados por essas pessoas mal intencionadas.
Então, por mais esperta e com maior autoestima que a criança tenha, não dá para acreditar que ela vai conseguir se virar sozinha no mundo virtual?
Eu digo assim: se o seu filho disser que está saindo, você perguntar para onde e ele não disser, nem com quem, que horas volta, como volta, a qualquer horário da noite ou da madrugada, sem dar nenhuma satisfação, e você achar que está tudo bem porque ele tem maturidade, então ele não precisa ser monitorado. Esse dia vai chegar. Eu e você saímos sem dar satisfação para as nossas mães. Porque somos adultas. Um dia esse filho vai poder sair sozinho. Mas se ele não pode sair sozinho no mundo real, ele não pode estar sozinho no mundo virtual. É tão ou mais perigoso quanto. A segunda coisa que precisamos entender é que conversar, explicar em casa, na escola, é super importante, mas é preciso compreender o que eles vão absorver dessa conversa dentro da sua fase do neurodesenvolvimento. É igual pegar um criança pequenininha, de 4 anos, parar com ela diante do sinal, explicar como atravessa a rua. Quando ficar vermelho a gente pode atravessar, tá bom? Tá bom. A criança entendeu tudo, ela sabe as cores. Só que você não fala isso e larga a criança, sozinha, para atravessar a rua. Por que? Apesar de você ter orientado? Porque você sabe que ela entendeu a orientação, mas que com 4 anos ela não tem um cérebro maduro que permita seguir essas orientações à risca. Quando se fala de adolescentes na internet, as pessoas esquecem disso. As pessoas falam “eu expliquei para o meu filho que ele não pode falar com estranhos. Então ele não vai falar com estranhos”. Mas é esperar deles coisas que eles não têm condições de fazer, porque o cérebro deles é imaturo. Conversar é necessário. É importantíssimo. Educação digital, letramento digital, tudo é importante. Falar mil vezes e tal. Mas também lembrar que só isso não resolve. Por quê? Porque eles não têm maturidade para cuidar de si desse jeito que a gente espera.
Numa situação em que ocorre bullying no grupo de WhatsApp dos colegas e isso vem à tona, os adolescentes entendem a gravidade?
Não chega tanto na Justiça, mas acontece muito nas escolas e eu fico sabendo. Cai a ficha? Não. Acho que para a maioria ainda não cai. Estou com um caso, por exemplo, em que um garoto começou a mandar no grupo de WhatsApp do condomínio, em que havia uma pessoa negra, um monte de figurinha racista, símbolo nazista e gif racista. Aí a pessoa denunciou. A família acha que é uma bobagem, que “ele não sabia o real significado”, “está arrependido”, como se tudo fosse “uma brincadeira de adolescente, de mau gosto”. Em compensação, as vítimas de bullying às vezes estão lidando com ideação suicida, têm que mudar de escola, se cortam, tomam remédio tarja preta porque estão com um quadro de depressão e de ansiedade... As famílias também são muito permissivas.
As plataformas estão assumindo sua parte de responsabilidade?
As redes sociais não foram desenhadas para serem usadas por adolescentes e por crianças. É um lugar de adultos, mas são usadas por eles no Brasil e no mundo todo. E as plataformas não fazem a sua parte de tornar o ambiente mais seguro, nem que seja proibir as crianças de entrarem de verdade, não a palhaçada que é uma mera autodeclaração. Alguns países como França, Inglaterra e Austrália estão tentando impedir o acesso. Existem várias tecnologias para fazer isso, como uma verificação pelo CPF, que já existe, o banco faz. Então, uma pessoa que não tem 13 anos não vai poder ter conta no TikTok, já que a idade mínima é 13 anos. Imagina se alguém comprasse um horário nobre na propaganda do Jornal Nacional para mostrar um vídeo, sei lá, ensinando a torturar um gato. Imagina alguém dizer "a Rede Globo não tem responsabilidade, só vendeu o horário, o louco é que é responsável". É impensável, né? É tão absurdo, mas é exatamente isso que a Big Tech fala: “eu não tenho responsabilidade, eu sou a plataforma que hospeda o conteúdo de terceiro”. Tem sala de bate-papo no Discord com estupro de bebês! Não dá para dizer que o Discord não tem nenhuma responsabilidade nisso. Eles têm como bloquear isso previamente, têm como notificar as autoridades, mas não fazem. É que nem o caso de um sem-teto incendiado: o nome do evento era “Fogo no Mendigo”, todo mundo sabia o que ia acontecer, eles abriram 24 horas antes. Foi avisado, não foi disfarçado, entende? E o crime aconteceu.(Da Folha de SP)