• As ligações da máfia do combustível com a Cracolândia, UPBus, Tatuapé, Hulk e o ‘Concierge do PCC’

    667 Jornal A Bigorna 08/09/2025 13:20:00

    Todo universo criminoso relacionado ao Primeiro do Capital Capital (PCC) tem alguma relação com a organização criminosa que se apossou de parte do mercado de combustíveis no País e que foi alvo das operações Carbono Oculto, Tank e Quasar. O Estadão leu 10.986 páginas de decisões judiciais, relatórios da PF e do Ministério Público. E encontrou ali as relações da máfia que chegou à Faria Lima com pessoas que foram alvo de todas as grandes operações contra o crime organizado realizadas na última década no País.

    Ali está um dos líderes da quadrilha que tomou conta da Cracolândia; outro acusado é o maior acionista da empresa de UPBus, ligado aos narcotraficantes que transformaram o Tatuapé na Little Italy de São Paulo. Há ainda homens ligados à máfia dos Balcãs, parceiro de André do Rap, e à ’Ndrangheta, a máfia da Calábria, no sul da Itália, o Concierge do PCC. Isso para não falar dos já conhecidos Núcleos da Família Cepeda e de José Carlos Gonçalves, o Alemão, que seriam ligados à lavagem de dinheiro de Marco Willians Herbas camacho, o Marcola.

    Quem quiser compreender como as investigações da Polícia Federal (PF) se entrelaçaram com as investigações do Grupo de Atuação Especial e Combate ao Crime Organizado (Gaeco) deve se debruçar sobre as 8.056 páginas do processo número 1024067-19.2023.8.26.0224, da 2ª Vara de Crimes Tributários, organização criminosa e Lavagem de Bens e Valores da Capital. É por ali que um historiador do crime organizado deve começar a sua pesquisa. Seis novos acusados tiveram a prisão decretada.

    Tudo começou no dia 14 de maio de 2023, quando o policial rodoviário federal Luiz Alexandre Aleixo conduziu à Delegacia de Crimes Ambientais da Superintendência da PF em São Paulo, o motorista Renan Diego da Silva. Horas antes, ele havia sido parado em uma fiscalização de rotina na altura do km 226, da pista sentido São Paulo, da Rodovia Presidente Dutra, dirigindo um caminhão-tanque.

    O motorista não tinha habilitação para dirigir o veículo. estava fumando na cabine, apesar de transportar uma carga perigosa. Também dizia não saber se a carreta estava ou não carregada e por que a carga cheirava a gasolina se a placa de identificação da carga no caminhão dizia que ela transportava álcool. Laudo pericial constatou que o produto transportado não era nem etanol nem gasolina, mas o metanol usado para batizar a gasolina nos postos do PCC. O laudo mostrava que o produto não era produzido no Brasil, mas importado.

    Quase um ano depois, em fevereiro de 2024, o Gaeco e a PF deflagraram a Operação Boyle para aprofundar as investigações sobre as fraudes no setor de combustíveis. O esquema já era investigado pelo Gaeco desde a Operação Cassiopeia, que foi realizada em março de 2023 e atingiria o grupo Copape/Aster, dos empresários Mohamad Hussein Mourad, o Primo, e Roberto Augusto Leme da Silva, o Beto Loco. As defesas de ambos negam as ligações dos empresários — que estão foragidos — com o PCC.

    O combustível chegava aos portos de Paranaguá – terminal Cattalini – e Santos – terminal Ultracargo–, importado pelas empresas Quantiq e GPC Química. Ele seria destinado às empresas Mannabio e Araguaya, companhias químicas que produziriam biodiesel. “O produto, no entanto, não é entregue nas empresas – ao menos não no volume indicado -, mas destinado a postos diversos, para a adulteração no mercado de combustíveis", dizem os promotores.

    Durante um ano, a PF reuniu centenas de “tickets de pesagem”, emitidos pela Cattalini, com carregamentos no Paraná que deveriam ser destinados às empresas químicas, mas que mostravam o metanol distribuído a postos da Grande São Paulo. É aí que entra o chamado segundo escalão da organização criminosa. Um deles é o Núcleo Serginho, liderado pelo empresário Sérgio Dias da Silva, e a rede de postos dos irmãos Fernando e Bruno D’Amico.

    A defesa de ambos nega os crimes. A dos irmãos D’Amico alega que seus clientes vivem uma situação peculiar, a de serem acusados de formar uma “organização criminosa que não cometeu crimes”. Os federais colecionaram ainda mensagens trocadas por meio do WhatsApp entre Bruno D’Amico e outros integrantes da organização, revelando que ele movimentava parte de seus recursos pelo BK Bank.

    ​​​​​​​A instituição de pagamento foi um dos alvos da Operação Carbono Oculto. Ela teria movimentado R$ 46 bilhões em cinco anos, dos quais pelo menos R$ 17,7 bilhões em operações suspeitas de esconder lavagem de dinheiro, segundo relatório do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf). O BK nega qualquer relação com o PCC e diz seguir as normas de fiscalização e controle do Banco Central.

    “Os elementos contra os irmãos D’Amico e Sérgio reportam coincidente concentração das transferências para a BK”, afirmaram os federais. Empresas ligadas aos dois teriam movimentado, segundo a PF, R$ 68,9 milhões por meio do BK. É justamente no celular de Bruno d’Amico que surge o primeiro nome que liga a máfia dos combustíveis a outras operações rumorosas de combate ao crime organizado. A conversa está relacionada à operação da empresa Mannabio, de importação e exportação.

    Fim da Linha, a UPBus e o Tatuapé

    O empresário conversaria com a conta de telefone “G.G. Internacional” e no diálogo é compartilhada uma planilha de controle financeiro, que “remonta ao uso da Mannabio para simular licitude nas entregas de metanol”. Dizem os federais: “Especificamente, o favorecido é Admar de Carvalho Martins, o Dema. Trata-se de figura central do esquema de captura de parte do transporte público de São Paulo investigado na Operação Fim de Linha.

    Admar era o principal acionista da empresa de ônibus UPBus, dominada por integrantes da cúpula do PCC, como Décio Gouveia Luís, o Décio Português, integrante da Sintonia Final. A UPBus teve seu contrato rescindido pela Prefeitura. Ele também estaria envolvido com a compra de imóveis de alto padrão na região do Tatuapé, na zona leste, onde atuava o empresário Antonio Vinicius Gritzbach, que delatou o esquema e foi fuzilado pelo PCC no aeroporto de Guarulhos, em 8 de novembro de 2024.

    De acordo com a PF, Admar seria um dos possíveis fornecedores de metanol para os postos de Sérgio, que usaria o esquema de empresas de fachada para a emissão das notas fiscais de compra e transporte do combustível. Eles usariam quatro métodos para escapar da fiscalização: a primeira era a estratificação (layering), que consiste na aplicação de camadas de transações financeiras, com o objetivo de tornar difícil a identificação direta entre cliente e fornecedor.

    Também, segundo a PF, tinham preferência pelas transações em dinheiro vivo para dificultar o rastreamento da origem e do destino dos recursos; usavam ainda contas-bolsão de instituições de pagamento para evitar o rastreamento do dinheiro e a compensação offsetting, transações que se anulam mutuamente para esconder a origem ou o destino do dinheiro. Em uma das conversas Bruno se recusa a mandar dinheiro a Admar por meio de uma conta bancária, dizendo: “C é Loko. Da minha adm não posso mandar”. Admar então responde. “Manda lá berlin”. Berlin era o nome do BK Bank.

    Foi investigando as mensagens entre os acusados que surgiu o nome de um velho conhecido da polícia: Ygor Daniel Zago, o Hulk, acusado de ser um megatraficante internacional de drogas e um dos seis acusados que tiveram a prisão decretada pela Justiça. Ygor foi condenado pela Justiça Federal a 29 anos de prisão por envolvimento no tráfico transatlântico ao lado de André Oliveira Macedo, o André do Rap, e a máfia dos Bálcãs, na Operação Oversea, da PF, em 2014.

    No celular de Sérgio Dias foi identificado o grupo de WhatsApp “Boletos Combustíveis”, criado para pagar despesas relacionadas ao Núcleo Serginho. “O responsável por indicar os pagamentos a serem realizados, bem como as contas bancárias para as transferências, é Ygor Daniel Zago”, que mantinha contato com a Diretoria de Combustíveis, investigada pela Operação Tank, ligada aos empresários Mourad e Beto Loco.

    Segundo os investigadores, em diversas ocasiões, quando Ygor solicitava o pagamento de despesas, ele enviava os dados bancários, frequentemente atribuindo as contas a “Ademar”. Muitas dessas contas foram identificadas nas conversas entre Admar e Bruno D’Amico.

    “Percebe-se que essas empresas receberam aproximadamente R$ 5.720.837,82, enquanto enviaram aproximadamente R$ 4.309.317,44. Observa-se que, diferente do fornecedor ‘Beto Loco’, existe uma discrepância menor entre os valores enviados e recebidos por Admar. Isso se deve ao fato de que a relação entre o Núcleo D’Amico e Admar vai além da relação comercial cliente/fornecedor”, afirmaram os federais.

    Uma das empresas que receberia pagamentos dos irmãos D’Amico por ordem de Admar seria a Vale Petro. A coluna não conseguiu localizar sua defesa. A outra seria a Braslimp Química Indústria Comércio, que seria uma das empresas de fachada usadas pelo esquema.

    Os D’Amico teriam como fornecedor Belo Loco por meio da distribuidora Duvale, onde aparece mais um personagem acusado de ligação com o tráfico internacional de drogas: Daniel Dias Lopes, que está foragido. O criminalista Isaac Minichillo, que defende Hulk, alega à Justiça que seu cliente é inocente tanto das acusações de narcotráfico quanto de envolvimento com o PCC ou máfia dos combustíveis. A coluna não conseguiu localizar a defesa de Lopes.

    Ygor, Sérgio e Admar foram indiciados pela PF no inquérito. Os dois primeiros administrariam 32 postos de combustível. O esquema manteria outras 11 empresas de fachada. O Gaeco denunciou os dois primeiros em junho e pediu investigações complementares em relação a Admar – os D’Amico haviam sido denunciados em dezembro de 2023. O sigilo do caso foi levantado no dia 25 de agosto.

    Durante as investigações, os federais encontraram ainda dados por meio da quebra de sigilo bancário, que mostraram outras relações dos investigados na máfia dos combustíveis com o PCC. O objetivo era mostrar como “os indivíduos organizados em uma ampla rede de interpostas pessoas e ‘laranjas’” realizavam “a adulteração de combustível por meio de aditivos químicos, e efetuam algumas manobras de ocultação de bens e valores, objetivando dar aparência lícita aos valores obtidos com a venda do combustível adulterado”.

    A Cracolândia e o Concierge do PCC

    Além de Yago, os federais encontraram empresas de um homem ligado a roubos de condomínios e pagamentos a Emerson Giamundo, um dos principais acusados na Operação Salus et Dignitas, que investigou a organização criminosa liderada por Leonardo Monteiro Moja, conhecido como Leo do Moinho, o homem acusado pelo Gaeco de ser o chefe do tráfico de drogas nos hotéis da Cracolândia, no centro de São Paulo e “dono” da favela do Moinho, o QG de todo o “ecossistema criminoso” mantido pelo PCC na região central da capital paulista.

    A relação de Giamundo seria com outro empresário do esquema dos postos: Antonio Carlos Lomba. A coluna não conseguiu localizar sua defesa. Giamundo não figura nem entre os indiciados ou denunciados pelo Gaeco nesse caso. Outro acusado de ligação com o PCC que apareceu com a quebra do sigilo bancário foi Thiago Cesar Barbosa, que está preso na Penitenciária 1 de São Vicente, e outros oito acusados de ligação ao PCC, parte dos quais está foragida. A coluna não conseguiu contatar a defesa de Giamundo e de Barbosa.

    Essa rede de laranjas teria movimentado R$ 260 milhões só entre 2020 e 2021. Há estacionamento, lava-rápidos e postos de gasolina. É aqui que surge as relações dessas empresas com quatro personagens listados pelos federais, entre eles uma empresa de transporte, outra de representações e William Barile Agati, o Concierge do PCC, alvo da Operação Mafiusi, a maior da história a investigar o tráfico transatlântico de drogas e as relações entre a facção paulista e a ‘Ndrangheta.

    Agati operava no porto de Paranaguá, o mesmo usado pela organização criminosa para importar metanol. E teria como comparsa um homem acusado de manter relações financeiras com Sérgio Dias da Silva, o Serginho. “As transações dispostas nos recortes acima demonstram a estreita relação entre os depósitos vindos das empresas relacionadas com o tráfico de drogas e o destinatário Sérgio Dias da Silva”.

    Foi com base na continuidade das investigações sobre Admar e outros, que o Gaeco pediu 200 mandados de busca e apreensão contra 320 alvos, cumpridos na Operação Carbono Oculto, em 28 de agosto. Após a análise das contas bancárias dos acusados, os investigadores não tinham dúvidas: “O exame parcial das contas bancárias revelou transações significativas com membros do PCC, indicando uma possível relação criminosa que pode envolver não só a lavagem de dinheiro e outras atividades ilícitas, mas o efetivo controle dos estabelecimentos comerciais pela facção”.

     

    *Análise por Marcelo Godoy

    Repórter especial do Estadão e escritor. É autor do livro A Casa da Vovó, prêmios Jabuti (2015) e Sérgio Buarque de Holanda, da Biblioteca Nacional (2015). É jornalista formado pela Casper Líbero.

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