
Durante a pandemia da covid-19, o então presidente da República, Jair Bolsonaro, mandou o tenente-coronel Mauro Cid distribuir para aliados um medicamento de uso proibido no Brasil. O produto farmacêutico não tem registro na Anvisa e até hoje está apenas em fase de testes ao redor do mundo.
Dados extraídos pela Polícia Federal do telefone celular de Mauro Cid usado em 2021, obtidos com exclusividade pelo Estadão, mostram que o então ajudante de ordens da Presidência da República conseguiu obter uma carga desse medicamento e acertou diretamente com Jair Bolsonaro a entrega do remédio para diversos aliados. Procuradas, as defesas de Bolsonaro e de Cid não quiseram se manifestar sobre o assunto.
Entre os detidos está uma mulher de 27 anos, presa em Eldorado do Sul, responsável pelo monitoramento dos clientes.
Tratava-se da proxalutamida, um anti-androgênio não-esteroidal produzido na China para testes no combate a determinados tipos de câncer. Em 2021, bolsonaristas começaram a defender, com base em informações falsas, o uso desse remédio para o combate à covid-19.
Até hoje a proxalutamida não é autorizada em órgãos de referência ao redor do mundo nem para o combate ao câncer, finalidade para a qual ela tem sido estudada. A substância não consta, por exemplo, como medicamento autorizado nos registros da Agência Europeia de Medicamentos (EMA) ou de agências regulatórias de países-membros da União Europeia. Nos EUA, a autoridade americana, a FDA também não aprovou o uso da proxalutamida como medicamento.
A Anvisa chegou a autorizar a realização de estudos do uso do medicamento no tratamento da covid, mas a importação foi suspensa por causa da descoberta de irregularidades nesses estudos. Uma dessas irregularidades foi a importação de comprimidos em quantidade muito maior do que a autorizada nos estudos. O Ministério Público Federal abriu investigação na época sobre o caso e descobriu que essa importação em quantidade maior permitiu o desvio de cargas do medicamento. O inquérito sobre esse tema ainda está em andamento.
Os diálogos revelam, pela primeira vez, que Bolsonaro e Mauro Cid também estavam envolvidos na distribuição irregular desse medicamento.
Palavra final era de Bolsonaro: ‘Mande a proxalutamida’
Em 4 de junho de 2021, Cid enviou ao presidente uma notícia relatando que o pastor R. R. Soares estava internado com covid-19 e sugere o envio do medicamento. “Proxalutamida?!? Podemos levar amanhã. O senhor dando luz verde, está no Rio”, afirmou Cid. Bolsonaro apenas respondeu: “Aguarde”. As mensagens não deixam claro se o remédio foi de fato entregue. No dia 8 de junho, o pastor teve alta.
Em 13 de junho, Cid pede nova autorização para a entrega do medicamento. Nas mensagens enviadas por WhatsApp, ele não deixa claro quem seria o destinatário dessa vez. “Autorizado pela família! Posso mandar levar?”, perguntou a Bolsonaro. Mais tarde, Cid avisou que a entrega foi efetivada. “Missão cumprida!!! Medicamento!!!! Entregue à senhora Maria Luciana, esposa”, escreveu o tenente-coronel. Bolsonaro agradeceu: “Valeu”.
“Um da minha turma, que é irmão da esposa do meu irmão, ele tá com corona entubado. Queria saber se eu podia mandar uma proxa pra ele tomar lá. Tem um voo hoje nove horas, que a gente pode mandar isso aí”, perguntou. “Mande a Proxalutamida”, respondeu o presidente da República.
Os diálogos fazem parte das provas sigilosas colhidas nas investigações da Polícia Federal contra eles, mas não foram objeto de investigação pela PF.
Investigadores ouvidos pela reportagem sob anonimato afirmam que, como se tratava de uma substância proibida no Brasil, a sua distribuição poderia caracterizar o crime do artigo 273 do Código Penal, que prevê uma pena de dez a quinze anos de reclusão para quem vende ou entrega medicamentos sem registro do órgão de vigilância sanitária competente.(Do Estado de SP)