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    Contos do Zé #14 - Falando com Deus

    1622 Jornal A Bigorna 12/04/2020 11:00:00

    Palanque do Zé

    Aristeu era um cara comum, que em nada diferia das outras pessoas de bem de Vila Verde. Com o suor do seu trabalho como veterinário de animais de grande porte, conseguiu comprar uma chácara bem isolada da cidade, e lá passa dias tranquilos e sem ser incomodado por ninguém.

    Costuma dizer para os amigos - e são muitos - que não teve a sorte de constituir família, então quando seus pais morreram, acabou ficando sozinho no mundo.

    Sua irmã liga as vezes, mas é uma mulher ocupada com os próprios afazeres. Ela tem marido, três filhos, cinco netos e ainda ajuda a Igreja a distribuir sopa aos pobres. Ou seja, resta pouco tempo para o seu único irmão.

    Aristeu tinha apenas um vício: beber espumantes. Assim que acordava, bebia uma taça para tirar o gosto ruim da boca. Quando comia, bebia para ajudar o alimento a descer melhor, e antes de dormir bebia para manter-se "hidratado durante a noite".

    Apesar disso, nunca estava minimamente alterado sequer. Jamais causou qualquer tipo de problema para as pessoas e tampouco causou acidentes automotivos.

    Sua marca favorita era a Cava Sangre de Toro do tipo Brut. De acordo com aqueles sites especializados, essa bebida espanhola tem “frescor mas também uma cremosidade maior e notas aromáticas mais complexas”, seja lá o que isso signifique. O importante é que eles eram bons.

    O que Aristeu não sabia, era que o dia mais importante da sua vida ainda não havia chegado. E ele já estava com 89 anos.

    Antes de deitar-se para mais uma noite de sono tranquilo graças aos seus espumantes, separou os remédios para diabetes, colesterol, pressão alta, escoliose e coração. Como sempre fizeram antes, os beberia com uma taça de espumante.

    Mas quando virou-se para pegar a garrafa no frigobar que mantinha no quarto para ter suas garrafas sempre na temperatura ideal, percebeu que não estava sozinho.

    Havia um homem sentado na poltrona que um dia pertencera a sua mãe. Não sentiu medo e nem nada do tipo. Pelo contrário, sentiu-se tão bem quanto jamais sentira-se antes.

    - Quem é você?

     

    - E isso importa?

     

    - Claro! Você está na minha casa!

     

    - É justo. Sou Deus.

     

    - Sério?

     

    - Duvida?

     

    - Não... Não necessariamente.

     

    - Isso já é alguma coisa.

     

    - Mas eu acreditaria mais se você fizesse um daqueles truques da Bíblia.

     

    - Não são truques. São milagres.

     

    - Sim, milagres.

     

    Foi então que Deus, diante dos olhos de Aristeu, transformou-se em mulher, criança, coelho, colibri, leão e voltou à sua forma inicial, mas multiplicado por três.

    Quando as três formas se uniram numa só novamente, ele falou:

    - Está satisfeito?

     

    - Super.

     

    - Não parece.

     

    - Mas estou!

     

    - Então por que essa cara?

     

    - Qual a sua forma original?

     

    - Pra você, é essa. Mas posso ser o que quiser, pois estou presente em cada átomo que forma o Universo.

     

    - E o que fiz para merecer a honra de sua visita?

     

    - Visita?

     

    - Sim... é a primeira vez que nos vemos!

     

    - Eu te vejo todos os dias.

     

    - Sim, de fato eu o sinto as vezes.

     

    - Sei que sim.

     

    - Isso é bom.

     

    - Então, mas eu te procurei porque estou pensando em dar uma modificada nas coisas, sabe como é. Fazer uma Terra 2.0, como vocês adoram dizer em memes na internet.

     

    - Sei.

     

    - Porque tem muita coisa que precisa ser corrigida.

     

    - Certamente. Mas não consigo entender o porquê de o Senhor ter me procurado.

     

    - Por que você não pode ser procurado por Deus?

     

    - Sei lá. É que tem gente que merece mais. Os religiosos. O Papa, sei lá. Até a minha Irmã merece mais. Ela distribui sopa aos pobres!

     

    - Sei bem dos atos de sua Irmã. Mas eu te procurei porque quero uma opinião mais neutra.

     

    - Certo...

     

    - E o que você mudaria, na Terra 2.0?

     

    - Bom, suponho que o Senhor já pensou em todas as coisas mais importantes como amor, saúde, esperança, fim das guerras e dos sentimentos mesquinhos.

     

    - Sim.

     

    - Então podemos partir para as coisas menos vitais?

     

    - Essa é a sua oportunidade.

     

    - Bom, nesse caso eu acho que deveria chover só de madrugada.

     

    - Certo.

     

    - E acho que não deveria existir tempo ruim em finais de semana e feriados.

     

    - Tempo ruim só em dias úteis e de madrugada, é isso?

     

    - É só uma sugestão. Quem manda é o Senhor...

     

    - Continue.

     

    - Eu também acho que tudo o que faz mal e engorda deveria passar a ser saudável. Imagina só: Coma três cachorro-quentes pela manhã para ter uma vida saudável.

     

    - Sei...

     

    - Duas fatias de pizza de calabresa no almoço são essenciais para o bom funcionamento do intestino.

     

    - Não posso negar que essa sua ideia seria uma mudança de paradigma na medicina...

     

    - E nas redações de revistas de saúde também!

     

    - Também.

     

    - Posso dar mais uma sugestão? A última.

     

    - Claro.

     

    - Eu acho que toda dor, física ou moral, que alguém causasse ao próximo, deveria ser  sentida imediatamente pelo próprio causador.

     

    - Essa sim, foi uma proposta de mudança a se considerar!

     

    - Obrigado Senhor. Fico feliz em poder ajudar.

     

    - O prazer foi todo meu, Aristeu.

     

    E, de modo tão silencioso quanto quando apareceu na poltrona de Aristeu, Deus desapareceu.

     

    Aristeu jamais viu o mundo 2.0 em funcionamento, mas percebeu que as suas garrafas de espumante tinham sempre um sabor especial e jamais esquentavam - nem mesmo quando estavam fora da geladeira por horas e horas.

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