
Tudo começou com máquinas de pagamento encontradas em uma casa de apostas em Santos. Elas estavam em nome de postos de gasolina ligados a uma grande distribuidora. Os recursos que passavam nas máquinas eram depositados em uma instituição de pagamento. Pagamentos em dinheiro vivo mostravam um fluxo financeiro incomum. Em pouco tempo os investigadores descobriam aquilo que é visto como um dos pontos centrais na organização criminosa investigada pela Operação Carbono Oculto e que capturou parte do mercado nacional de combustíveis: a atuação do BK Bank.
Em nota, o BK Bank informou que foi surpreendido com a operação e que “conduz todas as suas atividades com total transparência, observando rigorosos padrões de compliance”.
“O BK Bank reitera seu compromisso com a legalidade e coloca-se à inteira disposição das autoridades para prestar esclarecimentos e colaborar plenamente com as investigações”, diz o comunicado.
A Reag Investimentos, que também é alvo da operação informou, em comunicado enviado à Comissão de Valores Mobiliários (CVM), que está colaborando integralmente com as autoridades.
Fundado como uma microempresa em 2012, com um capital de R$ 15 mil, sua sede ficava em Ribeirão Preto, no interior de São Paulo. Chamava-se BK Instituição de Pagamento. Em 2019, mudou se nome para Berlim Finance e passou a ter um capital de R$ 2 milhões e novos sócios. No ano seguinte, a empresa foi transferida para Campinas, cidade onde se tornaria, nos anos seguintes, uma espécie de hub das fintechs do crime organizado, como demonstrou a Operação Tai Pan, da Polícia Federal.
A transformação da BK em fintech ocorreu em 2022. Em 28 de maio de 2024, ela ampliou seu capital para R$ 9 milhões e se cadastrou no Banco Central. Em pouco tempo, movimentaria R$ 17,75 bilhões em operações consideradas suspeitas pelo Conselho de Controle das Atividades Financeiras (COAF), dos quais R$ 2,22 bilhões da distribuidora de combustíveis Aster, principal cliente da fintech. De acordo com a Receita Federal, as movimentações totais da fintech entre 2020 e 2024 somaram R$ 46 bilhões.
Ainda de acordo com a Receita, a “utilização de fintechs pelo crime organizado objetiva aproveitar brechas na regulação desse tipo de instituição. Essas brechas impedem o rastreamento do fluxo dos recursos e a identificação, pelos órgãos de controle e de fiscalização, dos valores movimentados por cada um dos clientes da fintech de forma isolada”.
De propriedade dos empresário Mohamad Hussein Mourad, ligado ao empresário Roberto Augusto Leme da Silva, o Beto Louco, a Aster teve sua atuação suspensa pela Agência Nacional do Petróleo (ANP) em 2024. Mourad era dono de uma rede de postos de combustível que estariam em nome de laranjas. Ele seria ligado ainda à Copape, uma formuladora de combustíveis.
De acordo com os investigadores, “a instituição de pagamento BK foi amplamente usada pela organização criminosa para a movimentação dos seus recursos financeiros”. “Identifica-se esse canal de fluxo financeiro para ocultar e dissimular a origem e o destino de valores”.
A BK usaria o que se costuma chamar contas bolsão (contas mantidas pelas fintechs em bancos sem identificar os verdadeiros donos do dinheiro) para blindar o patrimônio dos criminosos contra os sistemas de controle de lavagem de dinheiro do Banco Central e do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf). Atualmente, ela teria sedes em Barueri, Ribeirão preto em Campinas.
A expansão aconteceu ao mesmo tempo em que Mourad ampliou seus negócios para a região por meio da aquisição de quatro usinas sucroalcooleiras, além de ele se associar a outras duas usinas. Ele ainda teria movimentado R$ 311 milhões de outra instituição de pagamento investigada pelos promotores, o Bankrows. Já a Copape fez passar pelo BK um total de R$ 247 milhões. Outros R$ 435 milhões foram movimentados por fundos e empresas ligadas a Mourad.
Começo da operação e os cinco núcleos
A investigação que levou ao BK começou com maquininhas de pagamento usadas em Santos em casas de apostas clandestinas. Dali, chegou-se aos postos de gasolina em que elas estavam registradas e, por meio dos postos, ao BK Bank. Identificou-se cinco núcleos que atuariam na organização criminosa: o Núcleo Aster/Copape, o Núcleo Paraná; o Núcleo Yang; o Núcleo Alemão, comandado por José Carlos Gonçalves, operador de Marco Willians Herbas Camacho, o Marcola, e o Núcleo Zaraboxter, comandado pela família Cepeda, ligado a Alemão.
“Embora cada núcleo tenha uma pessoa ou um grupo de pessoas exercendo a função de comando e tenham a operação centralizada na atividade de contadores, verificou-se relacionamentos, mais ou menos próximos, entre todos os núcleos, desde logo destacando a centralização da movimentação de valores de todos esses núcleos na empresa Bk Bank” afirmaram os promotores.
Foi na Rua da Paz, no Boqueirão, em Santos, atrás de uma casa de jogo clandestino, que os investigadores apreenderam a primeira maquininha. Ela estava registrada em nome do Auto Posto Mingatto Ltda, mas os sócios da empresa não a reconheceram. O banco responsável pelo equipamento informou ainda que ela havia sido entregue em outro endereço.
Segundo a Receita Federal, “a fintech também recebia diretamente valores em espécie. Entre 2022 e 2023, foram efetuados mais de 10,9 mil depósitos em espécie, totalizando mais de R$ 61 milhões. Este é um procedimento completamente estranho à natureza de uma instituição de pagamento, que opera apenas dinheiro escritural.”
Com a quebra do sigilo, verificou-se que quase a totalidade dos valores recebidos (no total de R$ 859.151,57) era proveniente de vendas com cartão. Os valores eram diariamente transferidos para contas das empresas Class Finance e para a Berlin Finance Meios de Pagamento, o atual BK Bank. Em outra casa de jogos, na Rua Euclides da Cunha, os investigadores encontraram a mesma situação. Ali, os valores também foram para a Class Finance (R$ 614 mil) e para a Berlin Finance, o BK Bank (R$ 2,42 milhões).
As mesmas pessoas abriram as contas para obter as maquininhas de cartão, registradas em um mesmo telefone. Tratavam-se da tia e da sobrinha de um homem acusado de comprar postos de gasolina para a organização criminosa vender combustível adulterado. Os promotores identificaram diversos laranjas e 50 postos de combustíveis do esquema em Santos.
De acordo com o Ministério Público, a Agência Nacional do Petróleo registrou mais de 3 mil ocorrências nos postos da rede, das quais 350 ao menos se referem especificamente à comercialização e ao armazenamento de combustível fora das especificações; amostras reprovadas por presença de solvente ou teor de etanol acima do permitido; ou bomba medidora com aferição irregular.
Segundo os promotores, “esses fatos evidenciam, de forma clara, que os valores movimentados através da empresa BK Bank e das demais empresas de fachada controladas pela organização criminosa tinham origem direta na exploração de jogos de azar, na venda de combustíveis adulterados ou em fraudes metrológicas na venda de combustível”. Só um dos investigados tem 941 empresas registradas em seu nome na Receita Federal, das quais mais de 200 atuam no ramo de posto de combustível.
Sócios e as suspeitas dos promotores
Atualmente, o BK Bank presta serviços de tecnologia, com a disponibilização de uma plataforma eletrônica na internet para que seus clientes possam realizar transações, mediante a utilização dos recursos previamente aportados por eles nas respectivas contas de pagamento mantidas junto à empresa.
Os promotores suspeitam que a fintech esteja em nome de testas de ferro. E explicam o motivo: “A falta da origem dos recursos supostamente utilizados na aquisição das cotas de Mário Gardin, somadas à baixa movimentação financeira e patrimonial de Danilo Augusto, é um indicativo de que não é o titular de fato da BK BANK, mas um ‘testa de ferro’.” A fintech manteria as contas bolsão para interessados em lavar dinheiro. Gardin foi o fundador da empresa. Augusto a teria adquirido mais tarde.
Eles poderiam investir por meio do BK sem que seus nomes fossem identificados nas operações financeiras. É o que constatou a Receita Federal, que detalhou algumas das operações da fintech: “Foram feitas transferências milionárias para a conta do BK Bank na XP Investimentos, indicando remessa de valores ‘para operações de investimento no mercado financeiro, ocultado o real investidor’ e ‘apenas com a contabilidade da BK Bank, não é possível a identificação da origem e dos destinatários dos recursos movimentados pelas empresas’.”
O controle interno da conta de cada cliente do BK Bank é feito de forma interna, sem contar a contabilidade oficial da instituição de pagamento, criando uma espécie de contabilidade paralela no banco, sem a qual nem mesmo a instituição saberia como distinguir quanto o cliente deve pagar à BK Bank pelo serviço prestado, nem separar os valores recebidos entre os próprios de cada um deles.
”Este fato faz com que a BK Bank se torne um “buraco negro” para operações financeiras, pois, uma vez que determinado “cliente” envia o dinheiro para a BK Bank, esse valor é misturado com os valores de outros “clientes” e enviado para terceiros, sem qualquer identificação contábil, fato que torna a BK Bank extremamente atrativo para o livre trânsito de valores ilícitos”, afirmaram os promotores.
Embora não pudesse, como instituição de pagamento, movimentar depósitos em espécie nas contas, há elevados valores que entram dessa forma nas contas da BK Bank, algo que só uma instituição financeira poderia fazer. “Os depósitos eram feitos, inclusive, de forma fragmentada, com a evidente intenção de burlar os mecanismos de controle, tratando-se de estratégia de lavagem de valores”, afirmam os promotores.
Além da “origem espúria dos valores remetidos para a BK Bank”, a Receita Federal contastou “a movimentação financeira dos principais clientes da empresa com os valores de tributos federais pagos, constatando pagamentos extremamente baixos, trazendo também indícios de crimes de sonegação fiscal”.
De acordo com as investigações, a “primeira grande empresa que passou a transitar valores pela BK Bank” foi a Flórida Distribuidora de Petróleo, sendo responsável por 49% da movimentação da BK Bank em 2019, justamente o ano em que a movimentação desta empresa teve um expressivo aumento”. No mesmo ano, as maiores vendas da Flórida foram para a empresa Rosa SA Indústria Comércio de Produtos Agrícolas.
A Receita concluiu, no entanto, ao analisar as movimentações financeiras, que a Rosa SA efetuou vendas de R$ 58.988.654,2 em 2020 para empresas inexistentes com os nomes de Ruflo, Fox, Soluquimi, Torrente, LM entre outras. “Se estas empresas não existem, os recursos recebidos não têm origem, podendo, inclusive, ter origem em atividades ilícitas”, afirmaram os promotores.
A corretora Reag e a investigação
Além do BK Bank, outra instituição de pagamento alvo da operação é a Reag Administradora de Recursos LTDA sob a suspeita de lavagem de dinheiro do esquema. Ela se apresenta ao público em geral como um grupo financeiro independente, focado no desenvolvimento de soluções de investimento e crédito, com um amplo portfólio de produtos e de serviços integrados. Ela é associada à ANBIMA e credenciada na Comissão de Valores Movibiliários (CVM). Deveria, portanto, identificar seus clientes, manter registros de operações e comunicar operações financeiras suspeitas. Mas não foi isso que aconteceu.
Era ela que, nos primeiros semestres de 2020, administrava o Location Fundo de Investimentos e Participações Multiestratégia, o fundo de Mourad. Na CVM, Renato Camargo era o único cotista do fundo, que recebeu cinco depósitos de Renato, no total de R$ 54 milhões, o que levou no Santander a comunicar ao Conselho de Controle das Atividades Financeiras, o COAF, pois os valores movimentados eram incompatíveis com o patrimônio de Renato. Pela análise da movimentação financeira, foi possível verificar que R$ 45 milhões tinham como origem uma aplicação financeira de uma conta que pertencia a Mourad.
O dinheiro que Renato colocou no fundo foi usado para comprar a Cilos Participações e Investimentos, atual GASP Participações e Investimentos, empresa controladora da Copape Produtos de Petróleo e da Aster Petróleo Ltda. “A análise de materiais eletrônicos apreendidos na 1ª fase da Operação Cassiopeia revelou que Renato Steinle de Camargo, diretor administrativo das empresas COPAPE/ASTER, é na verdade testa de ferro, e que as empresas são geridas, de fato, por Mohamad Hussein Mourad e Roberto Augusto Leme da Silva.”
Um dos sócios da Reag, Walter Martins Ferreira III, é acusado agora de ter ajudado a ocultar o verdadeiro beneficiário do fundo Location, segundo conversas encontradas nos telefones de Renato apreendidos na Operação Cassiopeia. Eles escondiam de possíveis investigadores os nomes dos verdadeiros proprietários do Fundo. “Mensagens de aplicativo localizadas no aparelho de telefone celular de Renato Steinle de Camargo indicam que Walter Martins Ferreira III sócio/colaborador da REAG Administração de Recursos Ltda prestou auxílio para manter oculto os reais beneficiários do fundo Location.”
Em nota, a Reag informou que colabora “integralmente com as autoridades competentes, fornecendo as informações e documentos solicitados”, e que está à disposição para prestar os esclarecimentos necessários.
Alvo desta nova operação, a Reag já é investigada pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Ela foi alvo de uma inspeção da comissão nos dias 25 e 27 de novembro de 2024. De acordo com a CVM, na ação, foram “coletadas diversas informações e documentos para avaliar a efetividade dos controles internos da empresa e sua política de prevenção à lavagem de dinheiro e ao financiamento ao terrorismo”. A Justiça autorizou o compartilhamento dos dados dessa apuração da CVM com o Ministério Público, que agora procura comprovar a participação de Ferreira III na ocultação de bens de Mourad.(Do Estado de SP/Artigo Fausto Macedo)