
O caso do adolescente de 14 anos que matou os pais e o irmão de apenas três anos com a ajuda da namorada um ano mais velha chocou o País. Os dois jovens já estão detidos e, segundo a polícia, não demonstraram remorso pelo crime.
Coordenadora adjunta do Instituto de Estudos Avançados da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Telma Vinha estuda, especificamente, adolescência e violência extrema nas escolas.
Em entrevista ao Estadão, ela fala sobre como os adolescentes são cooptados online por grupos que promovem a violência a ponto de normalizá-la, abrindo caminho para crimes como o praticado pelos dois jovens. “É como se não tivessem noção do valor da vida humana”, afirmou.
Leia os principais trechos da entrevista:
O que acontece na cabeça de um adolescente para que ele chegue ao extremo de matar os próprios pais e um irmão pequeno a sangue frio e ainda esconda os corpos?
Todo mundo está tentando entender o que está acontecendo. A gente vê o aumento da violência juvenil, e não é uma violência branda, mas muito séria. O que posso dizer é que os jovens cada vez mais estão tendo acesso a conteúdos violentos, nocivos. Temos visto, em nossos estudos com grupos de adolescentes online, uma progressão em relação aos desafios violentos - até demonstração de crueldades, automutilação, tortura de animais. Quanto mais cruel o adolescente, mais status ele tem no grupo. Outra coisa que temos visto é uma prática de humor cruel, desprezo pelas normas sociais, discurso de ódio, homofóbico, misógino, gordofóbico, racista, mas tudo colocado de maneira irônica. Transgredir as regras sociais, morais, tudo é visto como ‘zoação’. Isso tudo leva a uma dessensibilização da violência.
Essa violência tem alguma causa, alguma razão?
Não, não existe ideologia, não existe causa. O que existe cada vez mais é um tipo de violência niilista, de violência que não tem uma causa, que é como um desafio. Eu faço porque posso, porque consigo. O fim da violência é a violência em si mesma. Esses processos levam a uma dessensibilização da violência. É como se eles não tivessem muita noção do valor da vida humana, da gravidade que é causar dor para alguém, tirar a vida de alguém.
No caso desta semana, os dois adolescentes se conheceram por intermédio de um jogo extremamente violento. Até pouco tempo atrás havia a ideia de que os jogos violentos não induziriam a violência. Isso mudou?
Fizemos estudos sobre jogos também. Não existe relação direta de causa e efeito, para alguns até os jogos violentos funcionariam como uma espécie de catarse, de alívio. Mas o problema, hoje, não é o jogo em si. É que o jogo hoje é interação. As pessoas postam o link do jogo nas redes para convidar as pessoas, algumas para jogar, outras para assistir, gente do mundo todo, gente desconhecida. A partir dessa interação, as pessoas vão se conhecendo, desenvolvendo relações e, eventualmente, sendo levadas para outros espaços, de automutiliação, de tortura de animais, de violência. Há meninos muito jovens sendo levados para esses espaços. E até mesmo por pedófilos que entram nos jogos disfarçados.
E as famílias pensam que o filho está jogando....
Exato. ‘Meu filho está só jogando’. Na verdade, ele está abrindo uma janela para o mundo. Se você soubesse que o seu filho vai a uma festa em que todo mundo usa droga, em que há pedófilos e muita violência, você deixaria ele ir? Não deixaria. É a mesma coisa. Não se trata de confiança, mas de um aparelho que te dá acesso ao mundo como um todo. E a imagem que os pais têm do filho é totalmente diferente daquela que ele tem nesses ambientes.
Existem adolescentes, quero crer, que são expostos a esses ambientes de violência e os rejeitam. Por que outros são mais vulneráveis?
Claro que existem níveis de sociopatia, mas as características do ambiente têm contribuído muito com isso. Nesses ambientes, a violência vai escalando, vai sendo vista como cada vez mais natural. Então existe uma característica ambiental muito forte. Cada vez mais estudos sobre terrorismo, radicalização, ataques a escolas mostram que em 80% dos casos eles são meninos entre 10 e 18 anos. Esse é um período de muita fragilidade, vulnerabilidade. O jovem vive situações em que se sente profundamente frustrado, injustiçado, incompreendido, desvalorizado, e, muitas vezes, os pais veem como bobagem. E aí você encontra um ambiente que te acolhe e te dá razão, o que nunca tivemos.
Mas quando tínhamos essa idade, também enfrentamos todos esses dramas e, muitas vezes, também não fomos acolhidos por nossos pais. No entanto, casos de violência extrema entre adolescentes eram muito mais raros.
Sim, claro. Ficávamos tristes, passávamos o dia chorando, queríamos matar e queríamos morrer, mas não tínhamos esses ambientes em que tudo é escalado e potencializado, não tínhamos essa interação com o mundo inteiro. Toda geração tem um ‘gap’ (lacuna) em relação à anterior. Mas agora: temos um fosso geracional, todo um universo que os pais desconhecem completamente.
No caso específico de que estamos falando, foi constatado o envolvimento direto de uma menina. Como você mesma citou, a grande maioria dos jovens envolvidos nessas violências é do sexo masculino. Isso está mudando?
Sim, estamos vendo participação maior de meninas. Em geral, elas são levadas para esses ambientes por meio das relações afetivas, como no caso. E aí vão aos poucos se dessensibilizando em relação à violência. De forma geral, aparecem muito também como vítimas de relacionamentos amorosos: enviam fotos, se expõem e são chantageadas.
Além da atenção maior dos pais, o que mais podemos fazer para enfrentar o problema?
Não podemos transformar em algo individual o que é uma responsabilidade pública e coletiva. Temos de responsabilizar as plataformas. Existe todo um ambiente político nos últimos anos que incentiva a violência. Não é que alguém diz “vai lá matar alguém”, mas é todo um ecossistema que leva a isso. As plataformas não podem ter um modelo de negócio em que quanto mais as pessoas ‘lacram’, mais lucros eles têm. Isso é muito sério porque toda a sociedade é influenciada por isso. Precisamos de mecanismos de regulação. Precisamos responsabilizar os que lucram com esses conteúdos. Precisamos também de trabalho forte nas escolas, de acolhimento, pertencimento, educação sobre o uso da internet. E precisamos também dar opção a esses jovens para tirarmos eles do mundo virtual: projetos de arte, cultura, esporte, enfim, oferecer alternativas. Até porque, muitas mulheres também trabalham o dia inteiro e não conseguem fazer esse controle. Não são sempre casos de famílias desestruturadas. Na maioria das vezes, é gente como a gente. O que quero dizer é que a questão é complexa e precisa ser encarada com a complexidade que tem. Casos como esse são a pontinha do iceberg.
Existe algum perfil desse adolescente?
Não gosto de chamar de perfil porque existe chance muito grande de estigmatização. Mas há algumas características a que devemos estar atentos:
quando a criança para de frequentar locais de que costumava gostar,
fica muito tempo online,
se afasta dos amigos e se isola,
começa a ter discurso misógino, homofóbico, racista que não tinha,
demonstra falta de empatia, apresenta manifestações impulsivas, agressivas,
se está usando blusão para esconder automutilação.
São alguns sinais em que devemos prestar atenção.