A história possui uma gama infinita de nuances a serem, por nós, analisadas. Principalmente os eventos grandiosos, como a Segunda Grande Guerra Mundial.
Já li mais de 80 livros sobre o maior conflito bélico que a humanidade protagonizou, e conhecia pouquíssimo sobre a agressiva campanha antitabagismo promovida pela Alemanha nazista — possivelmente a maior e mais organizada iniciativa contra o fumo da primeira metade do século passado.
E, por total ironia do destino, ela foi perpetrada por um dos regimes mais hediondos e genocidas da história humana.
Adolf Hitler, o Tampinha Austríaco, que era um ex-fumante compulsivo que chegava a consumir até 40 cigarros diários em sua juventude, transformou sua posterior aversão pessoal ao tabaco em política de Estado.
Após abandonar o vício por considerá-lo “um desperdício de dinheiro”, o Ditador passou a enxergar o cigarro como “um veneno contra a sociedade”, chegando ao ponto de classificá-lo, em seus delírios conspiratórios característicos, como “a vingança dos homens vermelhos contra o homem branco”, em referência ao suposto (e falso) ódio que os povos indígenas tinham contra os brancos (arianos “superiores”).
Essa obsessão pessoal, aliada aos estudos pioneiros do pesquisador Fritz Lickint, culminou em uma campanha que atingiu todas as camadas da sociedade alemã.
Lickint, ironicamente expurgado pelos nazistas em 1934 por razões políticas, havia publicado em 1935 o primeiro estudo revisado por pares que estabelecia a conexão irrefutável entre tabagismo e câncer. Sua monumental obra de 1939, Tabak und Organismus, compilava 8 mil estudos sobre os malefícios do fumo em 1.200 páginas — até hoje considerada a maior compilação acadêmica sobre o tema.
Enquanto a indústria tabagista o tratava como “o médico mais odiado”, o regime nazista cooptava cinicamente suas pesquisas para embasar sua cruzada, ao mesmo tempo em que o punia com o seu envio ao front para atuar como médico de campo.
Seria tentador interpretar essa iniciativa como um raro momento de clarividência em meio à barbárie. Mas, obviamente não foi o caso: Em verdade, as motivações de Hitler eram tão toxicamente ideológicas quanto qualquer outra política nazista.
A campanha antitabagismo do fracassado Cabo Hitler não dizia respeito à saúde pública, mas sim sobre pureza racial e controle populacional.
Mulheres fumantes eram retratadas como inadequadas para gerar a “raça superior”; jovens arianos deveriam perseguir o ideal do übermensch, livre de vícios que pudessem “danificar o potencial genético” alemão.
E, claro, os nazistas rapidamente culparam judeus e “negros degenerados” pela disseminação do tabaco, transformando o câncer em uma “doença política” a ser combatida através de meios políticos, um claro eufemismo para extermínio de “seres inferiores” como deficientes, gays, negros, ciganos e judeus, dentre outros “inimigos”.
O mais fascinante, porém, é que essa gigantesca máquina de propaganda foi um retumbante fracasso. Entre 1933 e 1937, o consumo de tabaco na Alemanha aumentou, em ritmo superior ao da França, que praticamente não tinha campanhas voltadas para o assunto.
Em 1941, Joseph Goebbels ordenou a suspensão das campanhas antifumo para não prejudicar industriais alemães leais ao Regime Nazista.
O próprio Hitler, que presenteava aliados com relógios de ouro caso abandonassem o vício, teve que aceitar, contrariado (porém não muito), a inclusão de cigarros nas rações militares.
Dados de 1944 revelam que 87% da Wehrmacht era composta por fumantes. O consumo só caiu de fato a partir de 1942, quando o Governo Alemâo racionou a produção de cigarros para direcioná-la às tropas.
O epílogo dessa história revela outro lado igualmente perturbador da equação moral.
Após a guerra, os Aliados — especialmente os Estados Unidos — fizeram questão de enterrar rapidamente os estudos alemães, mesmo sendo cientificamente sólidos e revisados.
A estratégia americana e inglesa era simples e devastadoramente eficaz: “Se Hitler diz que é ruim, então só pode ser bom”.
Baseados nessa premissa falsa, fabricantes americanos e britânicos promoveram ativamente o cigarro como hábito saudável, com endosso médico, enquanto o Plano Marshall enviava 93 mil toneladas de tabaco gratuito à Alemanha entre 1948 e 1949 para estabelecer mercado, ou, em português claro, viciar os alemães empobrecidos no final da Guerra.
Décadas depois, quando a conexão entre fumo e câncer tornou-se inegável, a narrativa foi reescrita para atribuir aos EUA e Reino Unido a descoberta pioneira.
Essa manipulação custou inúmeras vidas. A indústria tabagista gastou fortunas desacreditando pesquisas legítimas simplesmente por associação com o regime nazista, criando uma cortina de fumaça (literalmente!) que atrasou políticas de saúde pública por décadas.
É uma demonstração clássica de como desacreditar adversários políticos através de associação — tática primitiva que permanece assustadoramente eficaz até nossos dias.
A lição aqui não é que devemos creditar Hitler com visão progressista em saúde pública. Seria obsceno e historicamente desonesto.
Suas motivações eram repugnantes, sua implementação estava contaminada por ideologia genocida, e os resultados práticos foram nulos.
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