
Na esquina da Av. Drummond residia o Sr. Bartolomeu Guerra: homem de negócios, pai conservador e de família tradicional, prestigiado na high Society. Era alto, magro e elegante. Sempre bem trajado. Com expressão segura e olhar confiante, transmitia equilíbrio para todos ao redor.
Certo dia, quando saia para o trabalho, um menino que caminhava em direção à escola, notou que ele conferia várias vezes se realmente tinha trancado a porta. O garoto achou estranho, mas continuou andando… Na manhã seguinte, no mesmo horário – por ironia do destino – o episódio se
repetiu: Bartolomeu averiguando a fechadura e o menino observando curioso. Até aí, nada fora do normal. O corre-corre da rotina nos deixa avoados da cabeça.
Admito a você, leitor: eu não confio nas pessoas extremamente ponderadas. Na loucura que é a sociedade, quem se mostra muito centrado e sem vício nenhum me deixa com a “pulga atrás da orelha”.
Após confirmar janelas e cadeados, o nobre empresário foi para o seu lindo Rolls-Royce prata:
– Tio! Tio! Você não trancou direito a porta. Gritou o guri.
Sr. Guerra parou, pensou um pouco (demonstrando hesitação) e agradeceu:
– Obrigado, verificarei de novo.
Criança é um “bicho” atentado. O garoto não sabia se a casa estava fechada ou não, queria é lhe pregar uma peça. Ver aquele homem de ar prepotente e inabalável cair na insegurança das suas próprias ações. E foi o que aconteceu: ele retornou para a residência e se certificou que estava trancada. Depois disso a sua vida virou um inferno. Em todo lugar que se encontravam, o menino perguntava:
– Será que não esqueceu a casa aberta? A maçaneta está para baixo? Eu não garanto não, volte e confira.
De segunda a sexta-feira:
– Tio, tio! E a porta, travou? O coitado do homem não aguentava mais. Tinha certeza que trancou.
Olhava inúmeras vezes para garantir o que estava fazendo. Porém, não era o bastante. Sempre regressava colérico.
Se não bastasse, o garoto espalhou para turma da escola: na praça, em frente ao mercado, na esquina da lanchonete, em todos os locais onde tivesse um fedelho, surgia o questionamento:
– Fechou a sala, tio? O senhor anda meio esquecido, cuidado.
Bartolomeu ficou doente, não frequentava os cafés da classe alta e nem as partidas de golfe com os boêmios. Pirou por completo. A cidade havia se transformado em uma selva perigosa e obscura. Ele passou a ter raiva de crianças, brinquedos ou qualquer coisa que o remetesse à infância.
Veja! Um menino de aproximadamente onze anos de idade, desmascarou em semanas um homem e tudo o que ele construiu durante décadas. Na verdade, Bartolomeu não tinha ódio do pirralho - estava com raiva dele mesmo, pois não confiava em si. Criou uma autoimagem mentirosa. Sua credibilidade, autoconfiança e equilíbrio eram superficiais – não duráveis. Caíram por terra no instante em que foram colocadas à prova, iguais nossas qualidades e sentimentos. Somos virtuosos enquanto estamos na zona de conforto ou até pisarem em nosso calo. O mundo inteiro sentou numa panela de pressão prestes a explodir. Fomos reprimidos em diversos níveis desde o nascimento, por isso que o câncer, o stress e a ansiedade são pandemias crônica. Ninguém é honesto com seu coração: sorrimos, quando na verdade o desejo era mandar à merda ou chorar e choramos na hora que gostaríamos de gargalhar. Loucura! Por sobrevivência, vestimos uma máscara. O bebê aprende a ser político muito cedo: ele entende que ao rir ganha uma determinada coisa e no choro outra – são mecanismos inevitáveis. Crescemos associando tristeza com atenção/amor e alegria com vantagens/interesses. A vida se tornou um teatro e as pessoas, os atores. Observe as reuniões familiares: é uma hipocrisia descarada, onde uns encenam falar a verdade e outros fingem acreditar.
A saúde mental do ser humano é frágil, precisamos dos “doidos” para nos sentirmos sãos.
Invertemos o jogo na cara dura, pois os autistas são muito mais autênticos que nós, inclusive as duas palavras tem uma raiz comum. Não somos equilibrados, escondemos (inconscientemente) a insanidade. Ela está latente, recalcada pela moral, tradição, medo do inferno etc. Dostoiévski (pensador russo séc. XIX) tem razão quando escreveu: “Se Deus não existisse, tudo seria permitido”.
O final da história do senhor da Av. Drummond é o resumo do que vivemos hoje: em cada um de nós há uma pitada de Bartolomeu em potencial. A diferença não é qualitativa, é quantitativa. E se o planeta ainda não virou uma balbúrdia, é porque remediamos – no sentido literal – com barzinho aos sábados, compras no shopping ou seriados na Netflix.