
Quando o assunto é saúde pública, há poucos exemplos no mundo da magnitude do Sistema Único de Saúde (SUS). A rede é a maior em número de pessoas assistidas e leva serviços que vão desde atenção primária até a média e alta complexidade a boa parte dos 8,5 milhões de quilômetros quadrados do país. O sistema, no entanto, enfrenta um duplo desafio: entraves na gestão dos recursos em meio a um cenário de subfinanciamento.
O SUS foi criado dois anos após a Constituição de 1988 considerar o acesso à saúde um direito universal, em 1990. Completa, em 2025, 35 anos. É o principal prestador de serviços de saúde no Brasil e atende, de alguma forma, toda a população brasileira.
— O SUS cobre todos os brasileiros, ou seja, mais de 200 milhões de pessoas. Mesmo quem tem plano privado usa o SUS em vacinação, vigilância sanitária, SAMU, alguns medicamentos de alto custo — explica Eduardo Melo, pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e coordenador do Observatório do SUS, da instituição.
Segundo dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), de dezembro de 2024, 24,6% dos brasileiros tinham plano médico. Na última década, o número se manteve estável, variando entre 22,1% e 24,9%. Logo, cerca de 75% da população depende exclusivamente do SUS.
— Nós estamos entre 23% e 25% da população com planos de saúde privados há quase 10 anos. Não acredito que chegue a 30% porque são muito caros, e a economia tem um limite — avalia o sanitarista Gonzalo Vecina, professor da Faculdade de Saúde Pública da USP e fundador da Anvisa.
Os serviços do SUS estão presentes em quase todo o país. De acordo com números da Secretaria de Atenção Primária do Ministério da Saúde, compilados pelo Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS), a atenção primária cobria 84,7% da população em 2023.
Ainda assim, o SUS enfrenta desafios, entre eles o subfinanciamento. O sistema é tripartite, custeado pela União, estados e municípios. No nível federal, que responde por cerca de metade do investimento, o montante destinado à rede pública foi de R$204,2 bilhões em 2024, apenas 4,4% do Orçamento da União, segundo o Painel do Orçamento Federal. Para especialistas, a proporção é insuficiente.
— Se pegar tudo que gastamos como país em saúde, dá cerca de 9% do PIB, semelhante à média da OCDE. Porém, menos de 40% desse total é gasto público. Nos países da OCDE, 70% a 80% é público. Então é consenso que o SUS é cronicamente subfinanciado — diz Rudi Rocha, professor da EAESP/FGV e diretor de Pesquisa do IEPS.
Os números mais recentes do IBGE mostram que as despesas de consumo final com saúde no Brasil somaram R$872,7 bilhões em 2021, 9,7% do PIB — 4% de gastos do governo com o SUS e 5,9% dos brasileiros com a rede privada. Melo considera isso um problema urgente:
— O SUS cobre todos os brasileiros, mas movimenta menos que o setor privado, que cobre apenas 25% da população. Deveríamos chegar a pelo menos 6% do PIB em saúde pública para garantir sustentabilidade. A população envelhece, temos emergências sanitárias, tempos de espera elevados. O sistema precisa ser fortalecido — afirma.
Um dos maiores problemas decorrentes do subfinanciamento é dar conta da crescente demanda de serviços especializados. As filas, que podem chegar a meses ou anos, são um dos principais motivos que levam brasileiros a contratar planos de saúde.
Dados do Ministério da Saúde apontam que, em 2024, a espera para uma consulta com especialista chegava a 57 dias, e para cirurgia, a 52 dias — entre os dígitos mais elevados da série histórica. Para agendamento com especialista em genética, chegava a 721 dias.
O cenário leva o governo a contratar cada vez mais agentes privados para oferecer determinados serviços pelo SUS, lembra Vecina:
— O Brasil tem cerca de sete mil hospitais, 40% são públicos e 25% são filantrópicos, parceiros do SUS porque têm renúncias fiscais. A contrapartida é entregar 60% de sua capacidade física ao SUS. Mas há uma defasagem nesse pagamento.
Além disso, quando usuários de planos utilizam o SUS, as operadoras deveriam ressarcir o sistema. O pagamento, porém, muitas vezes não é feito. É comum que operadoras entrem com processos judiciais para evitar o reembolso.
Outro problema, complementa Melo, da Fiocruz, é a contratação de profissionais para os serviços públicos:
— Em muitos lugares, são trabalhadores precarizados, com vínculos frágeis e sem plano de carreira. Tivemos melhoras com o programa Mais Médicos, mas ainda é insuficiente.
Má administração dos recursos
A má administração dos recursos é uma crítica que acompanha o cenário de subfinanciamento. Em 2018, um estudo do Banco Mundial analisou hospitais do SUS e identificou uma eficiência de apenas 28%, equivalente a um desperdício de R$13 bilhões à época.
Uma auditoria posterior do TCU, divulgada em abril de 2025, apontou que a eficiência variou entre 32% e 50% nos anos seguintes, de 2019 a 2024. O indicador avalia o grau de aproveitamento da estrutura em relação à capacidade máxima, ou seja, a rede pública opera com aproximadamente metade do seu potencial.
“Dentre os riscos e pontos críticos identificados estão a ociosidade de leitos, salas, médicos e enfermeiros e a possibilidade de ampliação da produção hospitalar. Melhorar a eficiência hospitalar é essencial para a redução do déficit e para que o SUS consiga superar desafios emergentes, como o envelhecimento populacional e o aumento da demanda por serviços de saúde”, diz o relatório.
Outro exemplo de má gestão foi o desperdício de 58,7 milhões de doses de vacinas entre 2023 e 2024, segundo dados do Ministério da Saúde, representando R$1,75 bilhão perdido. A pasta atribuiu o descarte a estoques herdados de gestões anteriores e à desinformação que afeta a adesão vacinal.
— O SUS tem o princípio da universalidade, é para todos. Conseguimos implementar isso no país, o que é um ganho. Mas quando pensamos que isso é para todo mundo, e o quanto de recurso precisamos para garantir que ele continue, precisamos pensar também em ter um uso mais racional desses recursos — defende a especialista em Saúde da Família e em Adolescência pela Unifesp, Viviane Pressi Moreira.
Neste contexto, há iniciativas que buscam tornar o uso mais eficiente, inclusive por parte do cidadão. Uma proposta apresentada no Fórum da Liberdade, que aconteceu em Porto Alegre, em abril, sugere a criação de um extrato informativo para usuários do SUS, mostrando os custos dos serviços utilizados. O acesso permanece gratuito, porém a medida incentivaria um uso “racional” pelo indivíduo.
— Ainda existe no Brasil uma parcela significativa da população que não compreende que aquilo que lhe é oferecido gratuitamente tem custo. Se entrego ao cidadão o valor, dou dimensão de gasto. Se a transparência é um princípio da administração pública, não estamos trazendo novidade — diz Flávio César Vasconcellos Ferreira, mestre em Governança Corporativa pela Unifesp e autor da proposta.(Do Globo)