
Como toda seita milenarista, o bolsonarismo precisa de seu mártir. A decretação da prisão domiciliar do ex-presidente nesta segunda-feira (4) é exatamente o que o grupo precisa para manter algo da mística que capturou parte do eleitorado brasileiro desde 2018.
Na campanha eleitoral daquele ano, Jair Bolsonaro envergou o manto mais literalmente, após o episódio da facada em Juiz de Fora. Até hoje não perde a oportunidade de tirar a camisa para mostrar os retalhos das inúmeras intervenções cirúrgicas posteriores ao atentado.
Sua nova provação aos olhos dos apoiadores começou também com uma exibição de gosto duvidoso, quando há duas semanas levantou a barra da calça para mostrar sua tornozeleira eletrônica, imposta por Alexandre de Moraes e confirmada pela Primeira Turma do STF (Supremo Tribunal Federal).
Levou uma reprimenda com cara de primeiro cartão amarelo e reincidiu, ao ter marotamente sua imagem espalhada e depois apagada pelo filho Flávio, senador pelo PL do Rio, durante ato em seu favor na praia de Copacabana.
O ministro lustrou a estrela de xerife e restringiu de vez a liberdade do político. Era algo previsível e forçado pelo bolsonarismo a partir do momento em que ganhou Donald Trump como fiador de sua campanha para sobreviver politicamente.
O presidente americano vem agindo na linha bateu, levou. Anunciou o tarifaço contra o Brasil justificando sua ação pelo que chamou de caça às bruxas contra Bolsonaro.
Quando Moraes lhe impôs a tornozeleira, perdeu o visto americano. Na semana passada, o que até aqui parecia o zênite da crise ocorreu quando Trump assinou o decreto das alíquotas de importação elevadas e, ato contínuo, colocou o ministro na lista dos sancionados sob a dura Lei Magnitsky.
Até aqui, há coincidência temporal na agressão institucional ao Brasil pelo republicano e medidas de Moraes. A provocação do domingo (3) claramente visa medir até onde isso vai, embora a resultante não seja clara.
Na prática e de imediato, há a tal renovação do tal martírio, que na história brasileira recente costuma ser por tempo mais ou menos limitado. Por vezes, é acompanhado de redenção: Lula (PT), por exemplo, deixou a prisão após 580 dias para lançar-se na campanha de retomada da Presidência.
Mas o líder direitista mira mais outro exemplo, o de Trump, que chegou a ser condenado antes de voltar a disputar e vencer a Casa Branca no ano passado. É esperança vã: as leis americanas são muito mais maleáveis, e a rigor o presidente lá pode governar acorrentado em um calabouço. De quebra, Bolsonaro já está inelegível até 2030.
A pesquisa do Datafolha feita na semana passada mostrou impactos mistos da confusão. O clã Bolsonaro perdeu os pontos que vinha ganhando nas simulações contra Lula, mas o petista não viu sua campanha de defesa da soberania e consequente criminalização dos oponentes lhe dar popularidade: a rejeição de 40% a seu governo ficou onde estava.
Para a direita que vareja os votos de Bolsonaro, o tempo que Bolsonaro ficar detido em casa é vital para os cálculos. A eventual extensão da prisão do líder é bom negócio, pois obrigará a debater nomes para 2026 à luz do dia, e retira peso do ex-presidente do tabuleiro —mesmo sem poder concorrer, é o "kingmaker" no grupo.
Claro, governadores como Tarcísio de Freitas (Republicanos-SP) irão se solidarizar com o ex-presidente, mas o caminho estará mais livre, restando saber se conseguirão se distanciar o tarifaço em nome do aliado.
Até aqui, foram relativamente bem-sucedidos, vide o desempenho superior ao da família Bolsonaro nas simulações de segundo turno com Lula. O sumiço de Tarcísio do ato de domingo em São Paulo foi criticado pelo clã.
Por fim, a prisão do ex-presidente, caso perdure até sua provável condenação pela trama golpista e leve à previsível escalada de Trump na guerra comercial com o Brasil, tende a prejudicar ainda mais Lula, apesar do verniz nacionalista adotado. A caixa de sortilégios à disposição do americano é grande, ao contrário da capacidade retaliatória do brasileiro.(Da Folha de SP)