As vítimas de abuso sexual por parte do clero continuam sofrendo retaliações "perturbadoras" dos líderes da Igreja Católica por denunciarem estes casos, revelou uma comissão do Vaticano nesta quinta-feira. Após examinar os casos específicos de cerca de 20 países em 2024, a comissão destaca os "tabus culturais" e a "cultura do silêncio" que cercam estas violências.
Em seu segundo relatório anual, a Pontifícia Comissão para a Tutela dos Menores também denunciou que a "resistência cultural" atrapalha a luta contra a violência em muitas dioceses e sinaliza as "grandes disparidades" entre regiões.
Pela primeira vez, 40 vítimas contribuíram para a elaboração do documento, algumas das quais denunciaram pressões por parte de autoridades da instituição, mais de 20 anos depois das primeiras revelações em grande escala nos Estados Unidos.
— Meu irmão era seminarista. O bispo disse à minha família que minha denúncia poderia comprometer sua ordenação — contou uma das vítimas. Outra relatou que sua família foi excomungada publicamente após apresentar sua denúncia.
O documento de 103 páginas, apresentado em setembro ao Papa Leão XIV, insiste nas reparações às vítimas, mediante apoio psicológico, pedidos públicos de desculpas e indenizações econômicas.
— É um verdadeiro grito por parte das vítimas: não se sentem ouvidas, não se sentem acompanhadas, às vezes não há uma relação empática, nem mesmo de respeito — afirmou o colombiano Luis Manuel Alí Herrera, secretário da comissão. — É importante comunicar publicamente os motivos da destituição de um padre.
"As figuras de autoridade dentro da Igreja que cometeram ou permitiram abusos talvez tenham sido consideradas muito essenciais e importantes para serem responsabilizadas. A resposta da Igreja aos abusos não deve reproduzir os mesmos erros", indica o relatório.
— Diante das lacunas sistemáticas persistentes da Igreja, este relatório anual pretende ser uma ferramenta — afirmou o arcebispo francês Thibault Verny, nomeado em julho como presidente da comissão pelo Papa.
A Itália, com vínculos históricos com o Vaticano, é especialmente criticada por mostrar "uma resistência cultural considerável à luta contra os abusos", afirma o documento, que também critica os bispos do país por não terem colaborado o suficiente, já que apenas 81 dioceses de um total de 226 responderam a um questionário de investigação.
De Francisco a Leão XIV
A comissão composta por especialistas religiosos e leigos de diversas áreas, como direito, educação, psicologia e psiquiatria foi criada pelo Papa Francisco em 2014, no início de seu pontificado.
Após múltiplas críticas sobre seu funcionamento e a renúncia de vários de seus membros, o Pontífice argentino integrou-a em 2022 à Cúria Romana, o governo da Santa Sé, e pediu um relatório anual sobre seus progressos. O seu sucessor, Leão XIV, eleito em maio, "tratou muito cedo desta questão" ao receber seus membros.
— Percebemos que ele levava muito a sério esta grave e importante missão — afirmou monsenhor Verny.
Em sua primeira entrevista publicada em setembro, Leão XIV mencionou a importância de proteger os sacerdotes alvos de acusações falsas, o que provocou a inquietação das associações de vítimas que exigem tolerância zero.
— Podem haver acusações falsas. É preciso reconhecer que se trata de proporções muito, muito pequenas — detalhou Verny, ressaltando a importância, para a Igreja, "de não estar constantemente na defensiva".
De 2013 até sua morte em abril de 2025, Francisco multiplicou as medidas contra a proliferação dos abusos sexuais, mas o segredo de confissão continua sendo absoluto e o clero não é obrigado a denunciar possíveis crimes à Justiça civil, exceto se as leis do país exigirem.
Papa sobre a fome: "fracasso coletivo"
Também nesta quinta-feira, o Papa Leão XIV criticouo fato de que milhões de pessoas no mundo passam fome e atacou "uma economia sem alma", que precisa de uma revisão das prioridades e dos modos de vida.
— Em uma época em que a ciência prolongou a expectativa de vida, a tecnologia aproximou continentes e o conhecimento abriu horizontes antes inimagináveis, permitir que milhões de seres humanos vivam e morram vítimas da fome é um fracasso coletivo, uma aberração ética e um pecado histórico — afirmou o Pontífice em um discurso na FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura).
O Programa Mundial de Alimentos (PMA), outra agência da ONU, anunciou na quarta-feira que a fome a nível mundial registra "nível recorde". Segundo a organização, também com sede em Roma, 319 milhões de pessoas enfrentam insegurança alimentar aguda, incluindo 44 milhões em níveis de emergência.
— Talvez o dado mais comovente seja o das crianças que sofrem desnutrição, com as consequentes doenças e o atraso no crescimento motor e cognitivo — disse Leão XIV. — Isto não é casualidade, e sim o sinal evidente de uma economia sem alma, de um modelo de desenvolvimento questionável e de um sistema de distribuição de recursos injusto e insustentável.
O Papa citou "Ucrânia, Gaza, Haiti, Afeganistão, Mali, República Centro-Africana, Iêmen e Sudão do Sul" como lugares onde "a pobreza se tornou o pão nosso de cada dia".
— Os cenários dos conflitos atuais fizeram ressurgir o uso dos alimentos como arma de guerra — disse.