• A obrigatoriedade de aulas em autoescola para obter a CNH deve acabar? NÃO

    36 Jornal A Bigorna 04/08/2025 06:30:00

    O Brasil vive tragédias cotidianas no trânsito. Mais de 40 mil pessoas morrem por ano e cerca de 1 milhão ficam feridas, sendo 200 mil com sequelas irreversíveis. Desde o primeiro registro, no começo do século 20, já ultrapassamos 2 milhões de vidas perdidas em nossas vias.

    Três fatores explicam esse excesso de violência no trânsito: infraestrutura precária e mal sinalizada, veículos inseguros —especialmente motocicletas utilizadas por populações de baixa renda— e, sobretudo, o comportamento dos condutores que negligenciam riscos e desobedecem às regras básicas de segurança. Dirigir é uma habilidade que consiste em pelo menos 1.500 sub-habilidades e impõe tarefas complexas que exigem o reconhecimento de objetos, o entendimento de como se movem e se relacionam, além da estimativa de velocidades e previsão do cenário futuro.

    O governo federal, por meio do Ministério dos Transportes, avalia flexibilizar o número de aulas de formação para os novos condutores. A meu ver, não é uma boa medida. Pela inexperiência, recém-habilitados têm baixa capacidade de antecipar o risco, hesitam na tomada de decisão e têm dificuldades na leitura do ambiente de circulação. Estudos nos Estados Unidos e na Europa indicam que condutores com menos de um ano de habilitação tem um risco quatro vezes maior de se envolverem em acidentes, e o dobro de chance de se envolverem em acidentes fatais quando comparados a condutores experientes.

    No Brasil, onde a formação de condutores está muito aquém do ideal, esses números provavelmente são ainda mais expressivos. Mesmo com muitas deficiências, tornar facultativa a formação do condutor flexibilizando o número mínimo de aulas é uma medida temerária.

    Poderíamos nos inspirar no programa espanhol, que entre 2004 e 2014 reduziu em 80% as mortes no trânsito. Uma das estratégias adotadas foi aprimorar a formação dos condutores, com atualização do conteúdo didático, dando ênfase em valores e atitudes, formação contínua dos instrutores e investimento em campanhas educativas e programas escolares de segurança viária.

    Aqui temos um processo de habilitação ineficiente: caro (cerca de R$ 3.000, em média), forma e avalia mal, e é inacessível para grande parte da população. No caso da habilitação para motociclistas (CNH-A), por exemplo, no teste prático do Detran o candidato dá uma voltinha num circuito fechado, sem ter que mudar de marcha, faz um "oito" com a moto e está aprovado. Podemos afirmar que ele estaria habilitado para enfrentar avenidas movimentadas e disputar espaço com carros, caminhões e ônibus, frequentemente com um baú ou passageiro na garupa?

    Atualmente, motociclistas constituem a metade dos mortos no trânsito e 8 em cada 10 acidentados com invalidez permanente.

    O Brasil conta com cerca de 15 mil autoescolas que empregam 100 mil instrutores de trânsito. Essas instituições enfrentam dificuldades econômicas, operacionais e investem pouco na melhoria da qualidade dos seus serviços. Não se modernizaram, formam condutores despreparados para o trânsito. Ainda que imperfeitas, são a principal instituição no processo formal e regulamentado de preparação para conduzir um veículo automotor. Para muitos, é o primeiro contato com normas de trânsito e as responsabilidades do condutor.

    Tornar as aulas optativas e liberar milhões de pessoas para conduzir veículos com base no improviso e na repetição de más práticas não é o caminho, podendo piorar ainda mais a situação. Os acidentes de trânsito geram cerca de R$ 12 bilhões por ano em custos para o SUS e R$ 20 bilhões à Previdência Social. Precisamos investir em educação de trânsito nas escolas, modernizar a formação de condutores, e tratar a segurança no trânsito como prioridade.

    David Duarte Lima

    Professor de epidemiologia dos acidentes de trânsito (UnB), é doutor em segurança de trânsito (Université Libre de Bruxelles); autor de “A Arte de Ensinar a Dirigir” (ed. IST)

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