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    Tango na Casa de Repouso

    Conto

    1945 Jornal A Bigorna 02/08/2020 13:40:00

    Uma carta...

    Um pacote de dinheiro...

    Um intrépido caso para este detetive que vos fala.

    Voltei à ativa depois de passar três meses preso por passar notas falsas no comércio em Salvador quando fui passear. Não sabia que as notas eram falsas.

    São coisas do passado.

    Viva a vida....

    Era manhã. Olhei o relógio. Meio-dia. Que merda. Voltei a dormir.

    Quando o belíssimo enigma da natureza, o esplêndido Sol se punha, eu estava já com meu melhor terno, limpinho e cheiroso.

    Tinha um caso a decifrar, e Tango nunca falha.

    Pontualmente às sete da noite estava defronte à Casa de Repouso Santa Herculana dos Mal Socorridos.

    Havia um enigma, uma morte, um pobre velhinho morto, e eu fora contratado para decifrar a morte suspeita. Juro que me senti um personagem de Agatha Christie.

    Hahaha, mas sou melhor que o pobre Hercule Poirot, sou foda, sou Afrânio Tango, detetive particular do Rio de Janeiro, a cidade maravilhosa.

    A porteira olhou-me de soslaio. Mostrei a carta da proprietária da Casa de Repouso, ela colocou seus óculos e leu lentamente. Minutos depois destrancou o portão.

    Estendi a mão, mas ela me ignorou. Mal-educada.

    Andamos até a porta principal, quando ela se virou abruptamente e fez um sinal de silêncio. Imaginei, que, naquela hora os velhinhos estariam nanando e, assim entrei na ponta dos pés.

    A sala ampla com vários sofás e poltronas mostrava um ambiente realmente de repouso.

    Ouvi barulhos no fundo e nos quartos. Sentamos e ela me fez um relatório breve da morte do senhor Francisco Chico Antunes Franco de Alves Azevedo, mais conhecido por Tatau.

    Não anoto nada, minha mente fértil e fotográfica guarda tudo.

    Sou astuto.

    Conversamos por mais algumas horas, e logo depois ela me levou aos cômodos do local.

    Gente.

    Que loucura!

    A Casa de Repouso abrigava vinte e três velhinhos.

    Quando adentrei a um saguão nos fundos, haviam pelo menos uns quinze deles lá ouvindo Rock e tomando chá misturado com whisky.

    Fui muito bem recebido. Todos se levantaram e vieram me abraçar. Senti-me um cara amado.

    Perguntei pelos outros oito, e fui informado que eles eram os acamados. Mas os quinze eram o fervor da Casa. Ficamos batendo papo até altas horas, sob o olhar circunspecto e severo de Madame Mi, a chefe da Casa de Repouso, que não foi muito com minha cara.

    Dos quinze velhinhos apenas cinco eram homens, e as dez ferviam no chá e na música zaragateando.

    Por volta de uma da manhã, Madame Mi se levantou e colocou um fim em nossa minifesta. Tudo bem. Marcamos para a próxima noite outro encontro, que seria mais formal, e os velhinhos adoraram.

    Fui beijado várias vezes e saí mais alegre que entrei. Olhei o relógio, peguei o busão e fui pro Bar da Gertrudez, minha linda e amorosa amiga, onde o melhor forró da zona leste existe.

    Não me lembro como cheguei em casa pela manhã.

     

     

    A noite seria tensa, mas acredito que não precisaria da ‘catarina’, meu revólver cano curto de 32 polegadas que uso astutamente contra o crime.

    Sou bom, mas sou impiedoso!

    À noite na Casa de Repouso se estendeu. Cheguei pontualmente às sete e varei a noite.

    Na verdade, conversei com as velhinhas mais astutas. As que ‘ouviam por detrás das paredes’. Essas são o “Ó do borogodó”, são apelidadas na Casa de ‘39’, ou melhor as fofoqueiras.

    Adorei as ‘39’.

    As ‘três marias’, como apelidei, era composto pelas donas Lulu, Muju e Caju. As três sabiam de tudo o que ocorria nos subterrâneos repousídicos.

    Vocês não acreditam no que elas me falaram da vida sexual, mas isso não vou contar pra vocês porque é muito íntimo delas. Mas o depoimento ‘in off’ do que ocorreu na noite fatídica da morte de Seu Tatau se desmembrou como eu nunca imaginaria.

    Após mais de quatro horas ouvindo as ‘três marias’, não foi difícil, e, em pouco tempo cheguei a elucidação do fato e do crime.

    Um crime cruel que vou contar pra vocês depois.

    Todavia o que me intrigou foi conhecer dois velhinhos excêntricos. O Val e a Rô Pimenteira. Formavam um casal excêntrico na última noite em que estive na Casa de Repouso.

    O Val era chapeiro e fazia lanches pra velharada nas noites e a Rô Pimenteira andava de cadeira de rodas elétrica e fumava como uma louca, parecida a mulher bituca. Às vezes fugia da Casa de Repouso pra ir pegar cigarros do ‘Paraguai ‘ no ‘Sujinho’. Um boteco fedido e nojento, onde ficava batendo papo com o dono. Um sujeito idoso de cara amarela e que dava os cigarros pra Dona Rô, que aliás, depois descobri que era uma ‘39’ também.

    Ela e Val faziam o casal perfeito.

    Rô me contou as bobaginhas que fazia com o Val. Não me esqueço quando riu e contou que o Val tinha o ‘saco’ tão grande, riu e contou que ele era ‘rendido’. Brincavam de ‘esconde –esconde’, já que a Rô sem óculos não enxergava nada. 'Safadinho o Val, me disse. Ele tira meus óculos e a gente fica brincando a noite de ‘esconde-esconde’, e riu. Ele é meu safadão, gosto dele. Sacudão, hahaha, eu taco a cadeira em cima dele, e derrubo aquele safado. Ele quer me possuir, mas eu não deixo', ria e falava a Rô Pimenteira, com a dentadura quase saindo da boca.

    Nossa conversa durou até às cinco da manhã. A vida da Rô Pimenteira tinha um passado fantástico. Professora desiludida aposentada, foi pra Casa de Repouso, contou ela mesma, porque sabia que lá era um lugar de muita diversão. Tinha um telefone que ligava pra sua filha, a Táta, que sempre ia visitá-la elevar cigarros. De dez palavras, oito ela falava da Táta. ‘Aí, a Táta todos os domingos me traz cigarros, sabe? Àqueles dos bão. Aqui o ‘bicho pega de madrugada’. É uma farra só. A gente come o lanche do Val e depois toma umas biritas e vara a noite saracutiando. É delicioso, a minha prima Lúcia que era beata também morou aqui, mas ela foi pra praia, noutra Casa de Repouso, pensa numa véia carola, hihihihi’.

    Na verdade, além das ‘três marias’ a Rô Pimenteira também me contou tudo que precisa. Seu depoimento foi esclarecedor.Por fim, fiz o relatório a dona da Casa de Repouso que era também delegada de polícia, a ‘Dedé safada’, como era conhecida pelos tiras.

    Safada essa delegada, abafou o caso e o assassinato do Seu Tatau.

    Com todas as provas que montei e provei, assim mesmo ela arquivou o caso por ‘debaixo dos panos’.

    Não tenho culpa. Fiz justiça, mas a justiça não se fez.

    Gastei toda a grana na Boate “Mula qui Ruge”, uma das mais badaladas Casas da noitada carioca, e foi lá que conheci “A Coração Mal”.

    Mas esta é outra estória que prometo contar pra vocês em breve.

    Depois das noitadas fiquei internado tomando soro para hidratação.

    Acho que bebi demais.

    Por fim, sem dinheiro, voltei ao escritório e a tomar minhas biritas na Gertrudez.

    Minha vida é exultante. Estava duro – sem um tostão no bolso.

    Liguei pra mamãe e ela me depositou uma graninha.

    Mamãe nunca falha.

    Ah, e sabem quem matou o Seu Tatau?

    Vou dar um de ‘39’.

    Foi a Madame Mi, a safada ficou com toda a herança do pobre velhinho e dividiu com a delegada.

    Odeio gente má!

    Assim, fiz justiça com a próprias mãos e, numa noite em que estava meio embriagado, peguei um carro roubado sem placas e atropelei a Madame Mi quando ela saía da Casa de Repouso.

    Sou bondoso, mas sou impiedoso.

    Tango, Afrânio Tango, detetive particular.

     

     

     

     

     

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