Trinta e sete anos após a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), o Brasil teve avanços importantes, como a redução da mortalidade infantil e o aumento da expectativa de vida, mas ainda enfrenta problemas históricos, como o subfinanciamento das ações de saúde, as longas filas de espera por atendimento e a má distribuição de médicos.
Se esses entraves são antigos e persistentes, outros ganharam força nos últimos anos e se tornaram ainda mais urgentes após a pandemia de covid-19, que expôs fragilidades, mas também mostrou o potencial de mobilização do País quando há coordenação e investimento adequados. O cenário atual exige tanto a recuperação de agendas históricas quanto a adoção de estratégias para lidar com questões mais recentes, como a desinformação em saúde impulsionada pelas redes sociais, os surtos intensificados pelas mudanças climáticas e os custos quase proibitivos de terapias inovadoras.
Veja abaixo dez desafios com os quais o Brasil precisa lidar para ter uma população mais saudável e melhor assistida.
Pontos de atenção
Subfinanciamento do SUS e aumento do custo dos planos de saúde
Alto custo de medicamentos e terapias inovadoras
Filas de espera no SUS
Acelerado envelhecimento populacional
Má distribuição de médicos e falhas na qualidade da formação
Epidemia de obesidade e de outras doenças crônicas
Aumento de transtornos mentais e de doenças neurodegenerativas
Pobreza e desigualdade como determinantes sociais da saúde
Novas pandemias e surtos – e demais efeitos das mudanças climáticas
Desinformação em saúde e negacionismo científico
Subfinanciamento do SUS e aumento do custo dos planos de saúde
Embora a criação do SUS tenha sido uma conquista para todos os brasileiros, o País nunca conseguiu equalizar a questão do financiamento do sistema. Dados do IBGE já mostraram que o gasto público brasileiro em saúde é muito inferior ao de outros países com sistemas universais, como França e Reino Unido, o que traz dificuldades para o custeio da assistência, principalmente em um cenário de aumento de custos por conta do acelerado envelhecimento populacional e dos preços elevados de novos medicamentos e terapias.
A Tabela SUS – lista que traz os valores repassados pelo governo federal aos estabelecimentos de saúde de acordo com o procedimento realizado – está defasada há anos, e Estados e municípios reclamam que precisam investir muito mais do que o mínimo constitucional para tapar esse buraco.
O envelhecimento populacional e o alto custo dos tratamentos inovadores também têm pressionado a saúde suplementar. Levantamento da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) mostra que, enquanto o número total de clientes de planos de saúde cresceu 5,3% entre 2013 e 2023, o de idosos saltou 32,6%.
Como a baixa utilização dos planos pelos jovens é usada para compensar um uso mais frequente dos clientes idosos, vem crescendo a reclamação de reajustes exorbitantes e especialistas temem que, se as mensalidades seguirem tal tendência, os convênios médicos passem a ser um artigo de luxo no futuro.
Alto custo de medicamentos e terapias inovadoras
Os últimos anos foram de grande avanço científico no tratamento de doenças como câncer, obesidade e patologias raras. Novas classes de medicamentos surgiram, mas os custos elevados das novas terapias fazem com que o acesso a essas inovações ainda seja privilégio de poucos brasileiros. Terapias oncológicas como a com células CAR-T superam o valor de R$ 2 milhões por paciente, assim como alguns medicamentos para doenças raras, como o Zolgensma, indicado para Atrofia Muscular Espinhal (AME), que custa a partir de R$ 7 milhões por dose.
Mesmo drogas com preços mais baixos, na casa das dezenas de milhares de reais, demoram até 11 anos para chegar aos pacientes do SUS depois de incorporadas ao sistema público.
Segundo especialistas, é fundamental que governos e indústria farmacêutica ampliem o diálogo e as instâncias de negociação para chegar a valores e formas de aquisição mais factíveis. Entre as propostas defendidas por médicos e associação de pacientes está a ampliação das compras centralizadas pelo Ministério da Saúde, o que permitiria acordos com preços mais vantajosos. Hoje, muitos dos remédios cobertos pelo SUS são comprados pelos Estados, prefeituras ou hospitais de referência, que recebem um valor de custeio do ministério para a aquisição. Esse valor, no entanto, nem sempre cobre os custos da terapia.
Outra modalidade seria a assinatura de acordos de compartilhamento de risco, quando o governo paga um valor variável ao fabricante pela droga, de acordo com a efetividade da terapia para cada paciente. O modelo foi usado pela primeira vez no Brasil justamente para a aquisição do Zolgensma. Outra medida importante é aumentar os investimentos públicos em pesquisas médicas nas instituições brasileiras, o que permitiria o desenvolvimento e a produção locais de algumas dessas terapias.
Filas de espera no SUS
Não é de hoje que as longas filas de espera por consultas, exames e cirurgias eletivas no SUS aparecem como uma das principais insatisfações dos brasileiros que dependem exclusivamente do sistema público. Nem por isso o problema está próximo de ser resolvido. Apesar dos programas anunciados pelo governo Lula (PT) para enfrentar a questão, é comum que pacientes relatem espera de meses ou até anos por um procedimento.
O primeiro problema está em conhecer o tamanho da fila. As listas de espera são geralmente registradas pelos Estados, municípios ou até por hospitais especializados. Com a fragmentação, há duplicidades e informações desatualizadas. A atual gestão federal prometeu ter esse número ainda em 2023, mas, até hoje, ele não é conhecido.
Neste ano, o Ministério da Saúde lançou o programa Agora Tem Especialistas, justamente com o objetivo de aumentar o número de procedimentos realizados e, assim, reduzir a fila. Uma das apostas foi fazer parcerias com hospitais privados e planos de saúde, que poderão ter abatimento de dívidas como benefício por oferecerem atendimentos a pacientes do SUS em suas redes. Resta saber se o programa será suficiente para reduzir de forma expressiva a espera por atendimento.
Acelerado envelhecimento populacional
O Brasil envelhece em um ritmo acelerado. Dados do Censo de 2022 mostraram que o porcentual de pessoas com 65 anos ou mais no País chegou a 10,9% da população – uma alta recorde ante o índice registrado em 2010, de 7,4%. Se por um lado o envelhecimento populacional deve ser celebrado como um reflexo dos avanços da medicina e de melhores condições de vida, por outro, ter uma população mais envelhecida traz o ônus do aumento da incidência de problemas de saúde como doenças cardiovasculares, cânceres e demências.
A avaliação de especialistas é a de que o Brasil não se preparou adequadamente para a mudança demográfica e epidemiológica. Faltam profissionais especializados, leitos em instituições de longa permanência (ILPIs) e centros-dia para receber essa população. O sistema de saúde precisa também estar melhor preparado financeiramente para cuidar de doentes crônicos por longos períodos.
É fundamental que, além de ampliar o número de serviços de saúde e de assistência social, o País promova mais políticas de prevenção com o objetivo de reduzir o risco de complicações de problemas como diabete e hipertensão na velhice.
Má distribuição de médicos e falhas na qualidade da formação
Embora a expansão dos cursos de Medicina tenha feito o Brasil atingir número recorde de novos profissionais, e o programa Mais Médicos tenha levado doutores a áreas mais vulneráveis, a distribuição desigual de médicos pelo País ainda é um problema a ser superado.
Segundo o estudo Demografia Médica de 2024, a taxa proporcional de médicos aumentou 209% desde 1990, chegando a 2,81 por mil habitantes em 2024, mas a análise detalhada por unidade da federação escancara a desigualdade: enquanto o Distrito Federal tem 6,31 médicos por mil habitantes, o Maranhão soma apenas 1,26.
Para especialistas e entidades de classe, para promover melhor distribuição é necessário melhorar as condições de trabalho dos médicos em áreas menos favorecidas e aprimorar a infraestrutura do sistema de saúde local para que o profissional possa realizar seu trabalho com qualidade e segurança.
Soma-se a isso o desafio de melhorar a qualidade da educação médica. Com o aumento sem precedentes do número de escolas de Medicina, conselhos de classe têm denunciado a falta de estrutura adequada para a formação e a falta de vagas de residência para absorver o contingente de egressos.
Epidemia de obesidade e de outras doenças crônicas
O número de pessoas com sobrepeso ou obesidade no País não para de crescer: dois em cada três brasileiros (68%) já têm uma das condições, e a estimativa de sociedades médicas internacionais é que esse índice continue crescendo nos próximos anos se nada for feito. O excesso de peso é um fator de risco importante para diversos problemas de saúde, entre eles as duas principais causas de morte no Brasil: doenças cardiovasculares e câncer.
Para especialistas, é fundamental que o governo trabalhe em várias frentes para enfrentar essa epidemia. Em primeiro lugar, são necessárias políticas públicas para reduzir o consumo de alimentos ultraprocessados. Nessa esteira, a taxação de produtos do tipo e a regulação da publicidade são algumas das medidas defendidas.
É importante ainda que o SUS ofereça novas opções de tratamento para os pacientes que já têm a doença. As canetas para a obesidade, como Wegovy e Mounjaro, estão revolucionando o combate à doença, mas não estão disponíveis na rede pública, o que inviabiliza o uso para a maioria dos brasileiros, dado o alto preço da medicação (R$ 1 mil a R$ 1,5 mil).
Aumento de transtornos mentais e de doenças neurodegenerativas
Nos últimos anos, o Brasil vem ocupando as primeiras posições de rankings dos países com os maiores índices de ansiedade, depressão e outros transtornos mentais. Instabilidade e polarização política, pobreza e desigualdade social, insegurança pública e violência urbana e mudanças trazidas pelas redes sociais são alguns dos motivos que explicam esse cenário. Em paralelo, surgem outros desafios no campo da saúde mental, como o aumento do vício em apostas online (bets) e o aumento de transtornos mentais entre adolescentes.
A rede de atenção psicossocial do SUS precisa ser ampliada e aprimorada – usuários reclamam de demora no atendimento e acompanhamento pouco individualizado. É preciso também combater o estigma ainda existente em torno dos transtornos mentais, o que faz com que algumas pessoas resistam a buscar ajuda.
Outro desafio é melhorar as políticas de assistência e prevenção de doenças neurodegenerativas, como Alzheimer e Parkinson, que também estão aumentando por conta do envelhecimento populacional. Levantamento do Ministério da Saúde mostrou que 2,4 milhões de brasileiros sofrem de algum tipo de demência, e a estimativa é que esse número dobre até 2039.
Além da criação de mais centros especializados para assistência a esses pacientes, é fundamental que os profissionais da rede pública sejam capacitados para detectar essas condições, o que permite uma intervenção mais precoce. Somente no caso do Alzheimer, estima-se que 80% dos brasileiros com o problema não tenham o diagnóstico.
As condições em que as pessoas nascem, crescem, vivem e trabalham, assim como o acesso que elas têm a recursos, têm uma forte influência sobre a saúde que elas terão ao longo da vida. Em um país desigual como o Brasil, esses fatores, chamados de determinantes sociais da saúde, são responsáveis, por exemplo, pelo maior ou menor risco de morrer por uma doença infecciosa ou de conseguir um atendimento ágil em uma emergência.
Um levantamento da Rede Nossa São Paulo mostrou que, em 2023, os habitantes do distrito Alto de Pinheiros, área nobre da zona oeste da capital paulista, viveram, em média, 24 anos a mais do que os moradores do distrito Anhanguera, bairro periférico no extremo noroeste da cidade.
Embora alguns índices socioeconômicos tenham melhorado nos últimos anos, um em cada quatro brasileiros (27,4%) ainda vive abaixo da linha da pobreza, com rendimento domiciliar per capita de até R$ 665 por mês. Melhorar a saúde da população passa, portanto, pelo enfrentamento da desigualdade socioeconômica e melhor distribuição de renda, assim como pela ampliação de políticas de habitação e saneamento.
Com urbanização e desmatamento crescentes e o avanço das mudanças climáticas, especialistas dão como certa a ocorrência de uma nova pandemia nas próximas décadas. O cenário reduz o hábitat de espécies silvestres, o que aumenta o risco do chamado salto de vírus de animais para humanos, como aconteceu com o coronavírus. Surtos de doenças já conhecidas há décadas, como a dengue, também se tornam mais comuns e severos com o aquecimento do planeta.
Eventos climáticos extremos, como enchentes, também podem aumentar a incidência de doenças infecciosas e parasitárias. Ondas de calor já provocam milhares de mortes pelo mundo e têm se tornado mais frequentes no Brasil. E ainda: as mudanças climáticas podem levar ao colapso de unidades de saúde. Relatório apresentado durante a COP-30 revelou que 1 em cada 12 hospitais do mundo tem risco de paralisação por causas relacionadas ao clima.
O enfrentamento desses problemas obviamente não depende apenas das ações das autoridades sanitárias. É preciso, acima de tudo, conter as mudanças climáticas com ações como a transição energética e a redução do desmatamento. Igualmente importantes são as medidas de mitigação de danos e adaptação. Mas também é fundamental que os governos tenham planos melhor estruturados de resposta a emergências em saúde pública, além de reforço às ações de prevenção das patologias que podem ganhar ainda mais importância no novo cenário ambiental.
Desinformação em saúde e negacionismo científico
Informações falsas sobre saúde não são novidade, mas seu impacto ganhou outra dimensão e alcance com as redes sociais. Assim como outros países, o Brasil também vem sofrendo consequências da disseminação de desinformação em saúde e ciência. O impacto mais claro é a queda nos índices de cobertura vacinal no País, que começou em 2015 e se agravou entre 2019 e 2022, em meio à pandemia de covid-19 e a declarações negacionistas de membros do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro.
Embora nos últimos anos tenha elevado os índices de cobertura vacinal, a adesão a alguns imunizantes ainda está abaixo da meta e o Brasil voltou a integrar, neste ano, a lista dos países com mais crianças não vacinadas no mundo.
A desinformação em saúde também tem como consequências o abandono de tratamentos e o uso de remédios ou terapias que não tiveram sua eficácia e segurança comprovadas cientificamente. Dificulta ainda mais o combate ao problema o fato de alguns médicos estarem entre os disseminadores de desinformação e falsas terapias milagrosas.
Especialistas defendem que é preciso responsabilizar aqueles que criam e disseminam esses conteúdos, mas também facilitar o acesso da população às vacinas e ao atendimento de saúde.(Do Estado de SP)













